terça-feira, 31 de dezembro de 2013

2014


Mais uma vez aquela data em que a gente tem que se sentir com esperança.
Mas esperança não tem data nem hora marcada, é coisa quente que desce derretendo a frieza da vida e enche o nosso corpo de futuro.
O ano vai mudar e todo mundo vai beber para comemorar, tudo ensaiado feito enredo de escola de samba.
Mas naqueles dias onde o ano não termina, a vida é mais ou menos ou não?
Escolhemos o caminho que queríamos ou só vamos, assim, caminhando feito zumbis naquela marcha imposta pelo roteirista do filme?
Que pode ser o nosso chefe, a nossa esposa, a nossa mãe, o nosso "carma".
A hora de ser feliz não é agora.
É sempre.
Tanto faz se a cor é azul, branca ou dourada, nada muda sem o nosso consentimento.
Os foguetes, os litros de álcool, a torração da pele na beira da praia e a comilança não são amuletos da sorte, não senhor.
Tudo vai ficar igualzinho, a não ser a nossa barriga e a sujeira na areia.
E se é preciso mudar, que mude!
Mas não hoje.
Nem amanhã.
Mas dentro.
Onde o verdadeiro show acontece.
Ou não.
Esperando mais um final de ano para encher o copo de promessas vazias.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Me dá amor?


Quando existe amor.
Não é preciso pedir quase nada.
Nem carinho, atenção, abraço.
Quando existe amor.
Fazer o outro feliz não é um favor.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Corda Bamba


Aprendi a andar na corda bamba.
Durante uma vida.
Mas confesso que ando cansada.
Talvez.
Somente talvez, o peso da idade tenha me curvado as costas e as tornado mais frágeis para tudo que dificulta.
E tudo que dificulta dói um pouco mais a ponto de eu ter que sorrir um pouco menos quando sacudo uma pedrinha escondida entre os dedos.
Ferindo aos pouquinhos.
Me impedindo o equilíbrio nessa corda de vai e vem.
Mas como jamais desisto nem de sonhos nem de sorrisos nem do meu equilíbrio, trato de olhar para frente ou para cima.

E na visão do sol, das nuvens, das árvores que seguram a corda, tomo fôlego.
Até o dia em que a dor for insuportável e eu tenha que reconhecer.
Que é o momento de descer.
E caminhar.

sábado, 21 de dezembro de 2013

Dentes à Mostra


Estou em uma idade em que os medos, quase todos, sucumbiram à percepção de que medo não serve para nada. Cautela, sim.
Bem, por isso não tenho mais medo de reconhecer os meus defeitos, que são muitos.
E como todos fazem, neste final de ano vou tentar corrigi-los.
Exceto um.
Sou bicho do mato, ermitã, selvagem ou qualquer adjetivo que se enquadre em alguém que abomina festas.
Não aquelas de amigos de verdade, de sorrisos de verdade, de alegrias de verdade.
Mas aquelas puramente sociais.
Ontem comprovei a minha abominação.
Convidada de um amigo do meu marido para a celebração de sua meia década, até que gostei da parte de escolher um vestido, pedir para a filha fazer aquela maquiagem que só ela faz, arrumar o cabelo, tomar um drinque depois de estar perfumada e com aqueles saltos (que jamais uso) nos pés.
O meu bicho interno ficou domesticado no trajeto de carro, na caminhada iluminada por tochas, no abraço de Desejo Muitas Felicidades.
Mas depois ele começou a se remexer, ameaçando rasgar o meu lindo vestido, rindo dos meus saltos desconfortáveis, fazendo eu me agitar na cadeira em frente ao telão com imagens de uma vida bem vivida.
Não sou comunista tampouco revolucionária, mas a euforia dos adoradores de vida social me constrange.
As mulheres troféu, os homens pavão (aqueles em que as cédulas se abrem coloridas e brilhantes), as disputas de melhor botox, melhores Coxas Depois dos Quarenta em diminutos vestidos de adolescentes, dentes mais brancos, demonstrações de Ainda Como, Ainda Dou, papos de férias monumentais, empregadas incompetentes, tratamentos" baratos" de mil reais.
A certa altura os meus dentes já estavam meio à mostra e eu temia pela transformação iminente.
Então, delicadamente, sussurrei um Vamos Embora no ouvido do meu marido.
Ele disse para eu esperar mais um pouco, pois seríamos os primeiros à sair.
Escondi as garras pontiagudas que começavam à surgir nas pontas do meus dedos, atrás da carteira fina e moderna de couro.
Finalmente percorremos de volta aquele caminho de tochas.
No carro, joguei longe os sapatos.
Soltei os cabelos.
E fiquei feliz de não ter matado ninguém.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Luzinhas de Natal


Quando pequena eu tinha uma fixação em olhar para as casas à noite, prescrutando as luzes de dentro, vendo silhuetas de móveis, de pessoas, de televisões e vidas ligadas. 
A visão do espaço onde a intimidade de cada um acontecia, me enchia de aconchego, de uma sensação perdida, não minha, mas que existia e preenchia um rombo imenso do meu peito.
Em algum lugar eu acharia aqueles lugares que me fariam sentir em casa.
Em algum lugar existiam luzes amareladas, pianos, gente sorrindo em volta de uma mesa de jantar, cortinas derramadas feito cascata, abertas e em paz.
Hoje tenho essas luzes, esses cenários e preciso bebê-los feito água para estancar uma sede que foi saciada aos poucos e acordou o meu corpo para tudo de bonito que a gente vê quando se está quase morrendo sem água.
Essas luzes que são meu jardim sempre verde, meu cão que alguém jogou magro e feio no lixo, cheio de vida e beleza e lambidas e pulos e faróis de esperteza e reconhecimento nos olhos.
Essas luzes que são as vidas que se entrelaçam com as minha, levantado da mesa, "puxa, estava bom, mãe", saciadas de estar junto, dividindo talheres e temperos.
Essas luzes que são cada lâmpada que enfeita a minha árvore de Natal, a fachada da minha casa e avisam: Sim, aqui ainda se acredita!
E quando me dizem para parar de enfeitar a árvore e repôr as tantas luzinhas queimadas e se preocupar menos com aquelas que, puxa já é noite e ainda não foram ligadas, eu sei.
Ninguém pode viajar comigo em cada lugar escuro que já estive.
Então eu entendo.
Mas deixarei a minhas luzinhas sempre brilhando.
Por mais que queimem.
Deixarei o meu jardim sempre verde.
Por mais que o sol tente secá-lo.
Olharei todos os dias para cada cão que tirei das ruas, cada pássaro que me pediu abrigo, cada planta velha que eu insisto em ressuscitar.
E terei aquilo que sempre vi de longe.
E que consegui trazer para o meu coração.
Agora, sem mais apenas olhar e desejar.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Infinito Meu


Eu não conseguia enxergar as estrelas quando tinha os meus olhos vendados pela neblina da insegurança.
A juventude é feita de luz, mas os pés, sem veias nem rugas, pisam um chão de partículas doloridas daquela areia que penetra nos dedos, trazendo o medo de afundar em algum imaginário qualquer.
Tenho uma lua toda minha.
E um céu tão vasto e lindo que me faz sorrir com a ideia de me perder.
Cheguei ao ponto de me desejar brisa.
Mar de marolas, luar refletido nas espumas do mar.
Banho sem pressa de se secar.
Hoje tudo posso.
Sou grande à ponto de conseguir flutuar no infinito.
Não tenho mais medos.
Meu único medo é pensar que depois de saber que tudo posso.
Ter medo de não mais poder.
Por ter deixado a juventude para trás.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A Minha Amiga Especial


Recentemente descobri as maravilhas de um mercadinho. Viciada em supermercados, resisti bravamente até descobrir o quão tenras são as batatas, o quão fresca é a carne e as frutas, o quão é gostoso conhecer o açougueiro, o padeiro e a dona do estabelecimento.
E ainda por cima gastar bem menos.
Há duas semanas fiz uma amiga lá no mercadinho.
Não é uma amiga comum.
Em algum momento doído de sua vida ela resolveu deixar que a dureza da realidade se tornasse fantasia e se escondeu em um canto aconchegante da sua mente.
Aos cinquenta anos ela é linda, mas linda mesmo, não aquela beleza óbvia e vulgar, mas aquela beleza de diva, onde os traços importam mais do que o conjunto.
Vaidosa, adora colares, brincos, tudo combinando, inclusive a sombra e o batom.
Porém, a euforia, a fala solta, a simpatia sem medidas, a coragem de dizer, de se apresentar, de virar amiga, neste Mundo tão antipático e hostil, faz dela uma pessoa diferente, mas não menos interessante.
O meu chaveiro do carro foi o motivo do início da nossa amizade. Um gatinho de plástico, comprado no ebay, com coleirinha no pescoço e uma guirlanda que adoro ouvir tilintar.
Hoje, depois do primeiro dia, onde ela não parava de me enaltecer e onde o gatinho foi dado de presente, sempre que vou ao mercado - a solidão a faz ficar lá, atraindo ouvidos pacientes, que acreditam que com tudo se aprende - ela me vê entrar e diz:
- Eu sabia que hoje a Barbie viria!
Sempre respondo que posso ser a avó da Barbie, mas ela fala alto, olhando para todos, enumernado as minhas qualidades físicas e todos riem e eu saio de lá com um pão fresquinho, cebolas douradas e cheirosas e um enorme sorriso no rosto.
Porque ela não se entrega a devaneios, ela apenas diz.
Diz que está assim por falta de amor, diz o que acha bonito, o que acha feio. Explica porque a família se transformou em um motivo de dor, fala sem retrancas, sem culpas, sem medo.
E não me importo quando vejo os olhares obtusos no momento que ela me abraça, pois sempre me interessei mais pelas almas, mesmo elas estando presas em algum armadilha confusa do cérebro.
E afinal, já vi mais loucos que se dizem normais do que coerentes que se passam por loucos.
E quem sou eu para julgar?

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Maldade


Um erro não é pecado quando existe no Sem Querer.
Quando no caminho, no cansaço, na cegueira temporária se constrói. 
Para em seguida se destruir em remorso e culpa.
Em vontade de que o tempo faça aquilo que nunca faz.
Retroceda e se busque.
Congelado.
Rebobinado.
Editado.
Um erro não pensado é criança que quer aprender.
Um erro calculado, mas permitido, é semente de um monstro tão perigoso quanto permanente.
Aquele onde crescem tentáculos, hábeis em assoprar a ferida, em recolher os cacos, em fazer das vítimas os culpados.
Somos todos errantes na confusão dessas linhas que vez ou outra se fazem nós.
Mas quando aquela gota de veneno pequena, porém capaz de aniquilar coisas imensas, se descobre eu uma mente mais perniciosa do que boa, os acertos perdem importância.
O monstro foi alimentado.
A fantasia que encobria, que fazia do lobo ovelha, cai sob o peso  tentador de estar por cima.
Esmagando, sufocando, ferindo. 
Com todas as forças.
Mas acariciando enquanto mata aos poucos.
E sem remorsos.
Que venham as próximas vítimas.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Pressa


E nesse caminho rápido.
De tantas voltas.
Olhei para o horizonte e vi um céu púrpura.
Com nuvens feito moldura.
Com a chaminé escrita como poesia.
Tudo desenho de lápis de cor. Obra de arte.
Para firmar na retina aquilo que vira para sempre refúgio no coração.
Faço a promessa de parar na próxima volta.
Para engolir como remédio esse cenário de sonho.
Tarde demais.
O sol se foi.
A noite é linda.
Mas guardei menos na alma do que eu poderia ter.

domingo, 8 de dezembro de 2013

A felicidade sempre é possível.


Quando alguma coisa nos falta.
Tentamos outra.
E aquele choro de uma abstinência forçada, vira o riso de uma descoberta.
De que, afinal, não perdemos nada.
Apenas ampliamos as nossas opções de felicidade.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Onde vamos parar?


Onde foi parar aquele tempo em que se tinha menos, mas se sorria mais?
Aquele tempo onde o Natal era sinônimo de cidade iluminada, esperança, crianças com listinhas de presentes? Com pessoas mais tolerantes, pois afinal era Natal, e não raivosas, estressadas com a lista infindável de obrigações à cumprir?
Onde foi parar aquele tempo de amigos do peito, de fiado no mercadinho da esquina, de novelas com heróis de caráter?
Aquele tempo em que os filhos crescidos eram mais tolerantes com os pais, as famílias tinham mais força e a força não estava na repetição de sentenças de que família é algo retrógrado e vai além de uma mãe e de um pai? 
Onde foram parar os deveres que ficaram soterrados pelos direitos de que tudo pode, tudo é válido, inclusive afogar os valores em prol da satisfação individual?
Meu Deus, como me faz falta uma época em que eu ouvia dizer que não se podia dizer muito, mas não se tinha tanto medo, inclusive dessa libertinagem de ações?
Onde estão as mulheres que são mulheres e os homens que são homens?
Onde está a alegria de viver?
O Obrigado, o Por Favor, o Pode Passar, O Bom Dia?
Que selva é essa que bestas que se dizem humanas massacram-se, empurram-se, sabotam-se?
Devoram-se?
Onde estão os bons? O que restou de humano, de alegre, de não virtual?
Que época é essa?
Para onde estamos indo, afinal?

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Tudo Pode Piorar


 A TPM é uma coisa séria.
Séria porque esculhamba com os neuro transmissores, dizima o corpo e transtorna a mente.
Poderia ser esse o diagnóstico de uma síndrome grave? Até que sim.
Porque por, aproximadamente, trinta anos uma mulher se transforma em um aberração de si mesma.
Todos os meses.
A fúria é assassina.
A fome também.
O corpo vira uma esponja cheia de água. Cansada, pesada, triste.
Nada que uma panela de arroz não resolva.
Ou meio quilo de chocolate.
Ou uns xingamentos de baixo calão.
Os filhos sofrem, o marido é crucificado, a balança vai pra conserto depois de ser pisoteada e arremessada contra a parede.
A gente sofre.
E como.
Aja choro!
Travesseiro molhado pelo sentimento de que o Mundo não nos entende.
E a fome assassina persistindo à tudo.
Que venham as gorduras, os doces, as frituras, as massas.
Depois é só liberar o choro que as calorias são gastas.
Mas até que gosto dessa inimiga, pois ela  ainda me provém de muitas outras coisas.
Pois aquela amiga dela, a Menopausa, fica me olhando lá do canto, com aquele sorrisinho sardônico e pensando:
Tu não sabe o que te espera.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Fêmea


Gosto de ser mulher.
De lamber cria, de ter colocado no colo, embalado perto do seio para dormir.
De ter olhado de perto o sentar, engatinhar, caminhar. De ter levado e buscado na escola, de aceitar ter sido rival para deixar que ocupassem o seu espaço, de ser secretária particular.
Gosto de ajeitar a casa, molhar o jardim, fazer uma receita nova, de servir à família e regá-la com a vida que almejo ter. Juntos.
Recriei profissões e as fiz mais flexíveis para que as férias não fossem motivo de discussão, para que eu fosse a base de uma construção que não se compra, não se vende e não se empresta. 
Protelo as minhas alegrias, pois sei que elas vem mais brilhantes quando seguem os sorrisos que tanto amo.
Já fui de tudo para que o plano que brotou do coração tivesse mais espaço que aquele que nasceu da mente.
As Mulheres Homens de hoje me assustam na sua busca frenética por fugir de sua própria feminilidade.
Protelam, delegam, para lá adiante tentar resgatar o que perderam.
Porque perdem, apesar da cabeça erguida, apesar das roupas caras, do carro, da posição de predadoras sexuais.
Porque o Lá Adiante chega quando a fugacidade da juventude for percebida.
E então, algo irá faltar.
Aquele algo que não se tem, quando o pensamento foi uma vertente individual.
Aquele algo que não se tem quando se pensa que se é dono do tempo.
Pelo menos, quando não der mais tempo, eu saberei que perdi e ganhei, mas não neguei que vim para amar.
Como jornalista, como filha, como mãe, como esposa, como publicitária, como amiga.
Mas acima de tudo, como mulher.


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Identidade


Nunca se esqueça de si, mesmo que o coletivo grite no seu ouvido.

Sozinhos


que a gente faz?
O que a gente quer?
O que a gente espera?
O que a gente é?
Se não existisse sequer um par de olhos para nos olhar?

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Breathless


O som do meu corpo caindo na água me fez acordar.
Por que mesmo estou aqui?
Ninguém me responde, nem vai responder.
Nem me perguntaram qual a cor que eu mais gostava para esse oceano comprido, cheio de braçadas.
Ok, vou seguindo.
Fingindo não ver as bocas escancaradas prontas para me devorar.
Sendo parte do cardume que não escolhi.
Eu poderia ter tido patas, mas não caminharia na fluidez do liquido sem as nadadeiras que vieram comigo.
Nem sei ao certo à que espécie pertenço, mas sei que pertenço à essa espécie que nada ao meu lado sem saber também que suas listras, formato e cor servem de referência para algo.
Essa água toda.
Tão limpa. 
Tão turva.
Essa água que é terra.
Essa terra onde tudo é tão pior. Mais do que os dentes afiados de uma moreia.
Esse pedaço assustador de Planeta onde o sofrimento é bandeira hasteada.
Onde a luta é a moeda.
Onde o errado é prêmio.
E se respira tanto quanto se sente falta de ar.
Nesse Mundo afogado por tudo que é mais insano.
E que impede o livre, suave, singelo e necessário respirar.



sábado, 23 de novembro de 2013

Nosso Roteiro Original


A leitura é umas das diversas maneiras que tenho de me abstrair do Mundo, relaxar e sentir prazer.
Mas gosto de ler mais coisas do que livros.
Gosto de ler gente.
Quando me pego parada em alguma sala de espera, café, aeroporto, banco de shopping, me entrego ao cinema particular do cotidiano, muitas vezes mais interessante do que aquele com atores famosos.
Sentada, com os olhos atentos e a mente vibrando, decupo cada cena, devoro cada gesto, memorizo cada olhar, e saio da experiência diferente, como qualquer filme de ficção.
Nas cenas vejo drama, comédia, sofrimento, alegria, ingenuidade, malícia. Vejo coisas escritas na linguagem do corpo.
Ontem não foi diferente.
Aguardando uma consulta com atraso de mais de uma hora, me dediquei às artes, à cultura que me deixa tão culta e feliz quanto admirar um retrato de um campo de girassóis.
A velhinha chega. Se apóia na grade da porta e prescruta o ambiente de cadeiras todas ocupadas. O menino de alguns dezesseis anos logo se levanta ao avistar a senhora com dificuldades motoras (o restante do elenco finge não ver.) Bom menino, deve ser o mocinho da trama. 
A figura que estava longe do campo de visão da platéia, adentra amparando o corpo rechonchudo, porém frágil. 
O filho.
Parecido, mesmos olhos azuis. Emana tristeza e desesperança no corpo magro de uns sessenta anos. A vítima (pelo menos ele se escolheu assim).
Na cadeira desocupada pelo herói, acomoda a mãe, que já é filha. Ficam ali, parados, sem palavras, sem nada.
Minutos se passam onde cada personagem finge não ver quem está ao lado, onde perfumes doces e cítricos se misturam no ambiente pequeno, onde sussurros são vento que sopram no meu ouvido.
O interfone mais uma vez grita. A porta se abre e vejo na hora que é a filha. Idêntica, exceto pelos olhos, que são castanhos.
Vem como mãe, encontrar as mãos enrugadas, acariciar os cabelos ralos, alcançar o aparelho de surdez, sorrir enquanto pergunta quase gritando "está tudo bem?". Se dirige à um irmão que não a cumprimenta, que se mantém sério, seco e intransponível à pergunta sobre os documentos para a recepcionista. Recebe como resposta um desidratado "não".
Não se falam, homem, mulher, um melhor que o outro, mais privilégios, melhor maneira de lidar com a vida, raiva, ressentimentos, indiferença.
E uma mãe. Dependente, idosa, carente que une quem não gostaria dessa união.
Com a chegada da mulher (aquela que tenta consertar tudo), o irmão vai fumar um cigarro na rua, pois o contato dói.
A mãe que agora é filha, é pura abstração e não sabe de quase nada, exceto de que precisa estar ali e que já viveu bastante, sabe-se lá quantas alegrias e tristezas foram suas, teve um marido e pelo menos dois filhos, que depois de dividir uma casa, alguns brinquedos e um ventre, não mais se suportam.
E o filho que a trouxe é o mesmo filho que não quer estar tanto com ela, pois a filha conversa alto e põe a velhinha a interagir com as outras velhinhas e diz que é bom estar ali pra fazer fisioterapia e os sorrisos não cessam, e as mãos que acariciam não param, enquanto os olhos azuis do homem estão virados para a rua ou talvez para os sonhos desfeitos em um passado qualquer.
É a minha vez.
Antes da sair, vejo a última cena da Vida Real.
Uma cena sem fim. Pelo menos para mim.
E como em todo bom filme, vou tratar de tirar alguma lição.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Ser Humano


A maioria das coisas eu faço sem pensar tanto o quanto deveria.
Pois sou apenas um animal, afinal das contas.
E depois.
É o meu remorso e culpa que me carrega até a minha forma humana de existir.
Então paro de mostrar os dentes.
De correr feito o vento.
De bater as minhas enormes asas.
E começo a sofrer por todos os erros.
Toda a fútil existência.
De existir sendo pessoa.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Meias Perdidas


Já deixei tantas meias perdidas de seus pares.
Se acumulando em uma bacia, prontas para serem dobradas juntas em alguma dia qualquer.
Como aquelas palavras que poderiam ter sido ditas, mas ficaram com preguiça de se tornarem voz, empilhadas em uma canto qualquer de futuro.
E o desconforto de se olhar para aquelas meias, abraços, pedidos de desculpas, declarações de amor, verdades duras que por falta de tempo, paciência, coragem, fazem os nossos olhos (coração) não estacionarem muito tempo, pois não se pode perder tempo e ainda temos muito tempo depois.
E já não vale muito à pena ser assim tão sincero, pois a sinceridade é pobre e não abre portas.
E podemos morrer de culpa, de vergonha e de medo por termos sido tão idiotas de procurar uma simples meia, quando é tão fácil comprar um novo par.
Custa tão pouco.
Joguemos fora aqueles pés perdidos e a vontade de remexer em gavetas à procura de coisas tão perdidas quanto valiosas, mas que se fazem inúteis nesses dias de coisas novas, brilhantes, perfeitas e bonitas.
Deixa pra lá.
Remexer no que nos falta pode fazer com que encontremos outras coisas perdidas há anos, todas atrás de uma máquina de lavar.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sempre Acreditei em Sereias


Aos quatorze anos eu me achava meio diva, meio demais, meio Última Bolacha Recheada do Pacote.
Muita gente dizendo que eu era bonita e eu focando no foco errado.
Mergulhando nas piscinas da Sogipa, ao som da Madonna (Cherish) ao fundo.
Se preocupando em passar de ano, ter a pele bronzeada, os cabelos compridos e em se vestir bem.
Tinha um palco imaginário ao fundo, onde todas as minhas qualidades não reconhecidas pelos meus (um pouco distraídos) pais seriam  postas no foco do binóculo de algum Anjo Milagreiro disposto a alimentar melhor alguém acostumada à ração de peixe. 
Então eu seria livre daquele confortável, porém hostil, aquário tão bem iluminado com uma luz artificial.
Porém, a minha salvação era a imaginação de alguma outra prisão qualquer.
Onde dotes (não qualidades) valiam moedas de ouro.
Pois uma vez adestrados, até os ursos selvagens jamais serão os mesmos caçadores de salmão de outrora.
Serão cães de pelo marrom, acostumados com o gosto fácil e doce do mel.
Industrializado de preferência, onde a facilidade dispensa a luta.
Baixei a cabeça tantas vezes que esqueci que braçadas em mar aberto podem ser mais perigosas e cansativas, mas nadadeiras atrofiadas pelo espaço limitado, podem matar.
Me disseram que mergulhos profundos não me trariam liberdade, mas risco de se perder na imensidão de muitas águas.
Cresci com medo.
De quase tudo.
Até de crescer.
Amadureci com a ansiedade dos assustados.
Mas sempre gostei de histórias de sereias.
Aquelas mulheres livres, de seios de fora, que tinham um oceano a ser explorado. 
Amei cada heroína ou personagem de história que burlava as regras dos politicamente corretos na intenção de salvar quem valia mesmo a pena.
E buscando lá no fundo de mim salvar o que eu realmente pensava ser importante nessa vida cheia de opções, consegui fugir do protótipo que esperavam.
Tive alguns percalços, é claro, mas quem não os tem?
Mas recheei o meu interior com coisas bem mais permanentes do que aquela bolacha que eu ameacei ser. Vivi ouvindo o canto das sereias e os rugidos dos ursos e sempre preferi os pés em contato com a terra.
E quando vejo esse monte de peixes lutando para ter todo aquele brilho, aquele holofote girado sempre na sua direção, respiro aliviada.
Já não tenho mais um aquário colorido e perfeito como prisão.

Egoísmo Saudável


Nem só de prazer vicário vive uma alma. É preciso se enxergar, existir, possuir uma amor exclusivo à si e ao que faz bem à si próprio para poder coexistir plenamente. Entender que todos necessitam de coisas singulares que não são menos importantes por não serem apenas nossas é a forma mais sublime de amar.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Por acaso aqui se pode fumar?


E para os dias nublados, um café. 
Com um doce à frente, derramando afagos e os olhos da outra que são ouvidos, na hora que a minha boca vira tempestade feito o dia feio lá fora.
E quando o sangue não estanca.
Daquela ferida feita por aquele que se deu o Mundo.
O silêncio cheio de barulho, de tanta prece dita na cabeça, vira companhia, vira uma fé infinita de que o amor vence tudo e então vou secar as lágrimas para não nublar a visão do futuro.
E no turbilhão de tantas coisas perdidas ou não achadas, nessa vastidão de desentendimentos humanos, me fazer um pouco surda, cega ou muda esquenta as pernas como coberta que separa o corpo do frio e dá aquela trégua na necessidade urgente.
Da gente.
De se preocupar e morrer de sede sem ter ainda acabado a água.
E para aqueles vazios cheios de necessidades absurdas, um copo cheio de vinho para amolecer um pouco a barreira dura que muda a nossa forma macia e a faz ficar congelada e difícil de tocar.
E um pouco daquele tudo que nos faz continuar mesmo quando a gente queria um pouco de descanso daquela nossa velha cara no espelho nos perguntando "o que você quer, afinal?".
E mais um café.
Ou um copo de vinho.
E muita fé.
Por favor.
Pois ainda tenho tempo.
Mas preciso de um intervalo.
Por acaso aqui se pode fumar?


domingo, 10 de novembro de 2013

Certo ou Errado?


Nas opções da minha vida.
Se eu tivesse que escolher entre todo o prazer de comprar cada novo sapato ou o prazer de me secar ao sol de um mergulho no mar, ficaria com o mergulho.
Se eu  tivesse que escolher entre gritar todas as palavras entaladas na minha garganta à simplesmente esperar que elas virassem semente de um projeto que eu mal sabia existir, ficaria com os gritos.
Se eu pudesse escolher entre todos os sorrisos forçados às lágrimas grossas e quentes, eu ficaria com elas.
Apesar de amar comprar sapatos, de conhecer bem os gritos abafados, de ser genuína nos sorrisos forçados.
Mas se eu pudesse dizer as tantas verdades que guardo quietas no silêncio da minha resiliência.
Eu teria muitos desafetos.
E nessa vida de meias verdades, meias mentiras, meios amores, meias entregas, nessa semi-vida vivida pelo fingimento tão conhecido de quem se adapta.
Somos todos gado.
Que pula, pasta, reluta e grita aos maus tratos.
Mas acaba quieto.
Enfileirado.
Para o abate.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Ponto a Ponto


Já me costurei tantas vezes. Quando os pedaços quase soltos ameaçavam desfigurar o conforto de ser inteira.
Já me refiz em tantas esculturas, depois de ser bloco inteiro pronto para ser esculpido e virar a forma que mais combinava com o ambiente da minha vida.
E nesses processos doloridos de recriação, onde a mudança foi costurada com a linha que estava disponível, onde cada massa foi dedilhada à ponto de se tornar forma, tive que buscar feito artista aquele gole d'água para recuperar as perdas do suor.  
E a minha fonte é tão variada, simples, porém tremendamente eficaz.
Tenho cheiros tatuados na minha memória que me remetem à momentos tão vívidos que sou capaz de fechar os olhos e viajar.
Não que as pessoas, lugares, objetos, comidas, donos dos cheiros, fossem algo espetacular.
Mas o momento em que o cheiro se fez abraço, ele se tornou a minha pequena boia na imensidão de um oceano turbulento e pronto para me engolir.
Esses cheiros que me salvaram (e salvam) tanto... aquele perfume Stiletto do Boticário, o cheiro de bonecos de borracha (daqueles de cartelas), de folhas queimadas na churrasqueira, o cheiro de um livro novo, de um cigarro de cereja (ou daqueles gudang), cheiro de sauna com eucalipto, de piscina, de pele exposta ao sol, do Giovanna Baby (perfume mais antigo do que eu), de óleo de Urucum, de Boa Noite ( aquela fumaça pra espantar mosquito), de protetor solar.
São tantos.
São tantas as formas de se salvar.
De se costurar.
E que nos sirvam para reacender a lembrança de que apesar de tanta coisa, temos tantas fotos, cheiros, lembranças que nos faziam sorrir.
E não sorríamos porque tudo era melhor.
Sorríamos porque sempre temos o amanhã.
E a infelicidade é o intervalo entre duas felicidades.
E ela nos espera sempre. 
Mesmo que demore.
Mesmo que precisemos costurar alguma coisa.

Alinhavar.
Ou simplesmente fechar os olhos.
E cheirar.

Detalhe


Algo nos incomoda profundamente.
E até descobrirmos que era apenas um grampo de cabelo.
Já brigamos com a metade da humanidade.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Mistérios do Dia a Dia


Pessoa,
Para você que pensa que existe um milagre escondido em cada lixeirinha de banheiro e de cozinha que se esvazia, não se engane.
Você que não vê mais os pelos dos seus gatinhos e cãezinhos que antes voavam rasteiros ao chão.
Você que vê as plantas saudáveis, os copos limpos nas prateleiras,
Que sente o perfume dos lençóis recém trocados, as roupas limpas e passadas no armário,
Saiba de um segredo.
Por trás de todo esse mistério existe uma mulher.
A amada.
A mãe.
A empregada.
A remunerada.
A nem tanto.
A cansada.
A disposta.
A tolerante.
Ou todas elas em uma só.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Tempo


Eu deixei cair alguns grãos de felicidade pelo caminho, enquanto eu carregava fardos inteiros no decorrer da minha caminhada.
Esses grãozinhos que germinaram tantas plantinhas que já não consigo regar.
Na estrada da minha vida.
Já não posso voltar e alcançá-los.
Deixo-os viçosos nas esquinas da minha lembrança.
Me contento em não colhê-los, mas tê-los adubo no crescimento do que me tornei.
Quem sabe?
Um dia não os veja de novo?
Como árvore?
E possa repousar na sombra do que se tornaram?
Porque não volto no tempo.

Mas escolho no meu tempo tudo que é parecido com o melhor do que fui.
E guardo em potinhos com algodão umedecido.
Não tenho coragem de deixar morrer nada que é bom.
Pois o tempo muda.
Os ventos sopram diferente.
E fazem árvore.
Galhos frágeis, curvados pelas tempestades.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Janela


Te amo aberta para tudo isso.
Tudo isso que eu não comprei, não tenho guardado dentro de gavetas, de armário.
Toda essa cor que não é tinta.
Essa paz que não é missão, é presente.
Janela que se faz sangue.
Que bombeia o meu coração.
Que bate mais forte.
Por ver tanta beleza junta.
Com apenas um movimento das minhas mãos.

domingo, 27 de outubro de 2013

Cheiro Bom


Cheiro de cozinha é um dos cheiros mais maternais e aconchegantes que existe.
Aquele cheiro depois que a louça foi lavada, o chão varrido e enxaguado, onde os odores dançam no ar e nas narinas e penetram nas nossas lembranças mais atávicas.
Se espalhar um pouco pela casa, melhor ainda.
Casa com cheiro de cebolinha refogada, de riso, de carinho salpicado feito tempero.
Cheiro de "vem cá que está pronto", de gente grande que era pequena, sentada à mesa, de mãos bonitas que eram roliças e miúdas, se servindo dos pratos.
Os cheiros de uma cozinha contam mais histórias do que muitos livros, em cada odor de pão torrado, de mel, de leite quente, de toda essa palavra não escrita, essa fala não dita que é o aroma das coisas, das vivências, das pessoas.
Não quero uma cozinha imaculada, sem pingos de gordura que não passam despercebidos.
Gosto desse cheiro de vida, de sálvia, de manteiga derretida.
Amo secar uma panela de ferro no fogo, secar um pano de prato na tampa do forno, escorrer um bolinho, torrar o pão na frigideira com bastante manteiga.
E depois sentar com um café fumegando.
Cheirar o ar.
Sentir.
Que nas pequenezas de existir, renascemos todos os dia.
Tão simples.
Tão pouco.
Tão grande.
Tanta vida.

sábado, 26 de outubro de 2013

Eu?


Pensamos que as pessoas precisam mais de nós do que realmente precisam.
Pensamos que somos mais importantes do que realmente somos.
Pensamos que nossas atitudes serão bem mais notadas do que realmente o são.
As pessoas, hoje mais do que nunca, prestam mais a atenção ao seu reflexo no espelho, à sua sombra projetada na calçada do que aos outros.
Por isso, é perda de tempo agir, sentir, dizer, se motivar por razões de outrem.
Que nossas fotos, sorrisos, palavras, atitudes, esperanças, méritos, conquistas sirvam para alegrar à nós mesmos.
E que dividi-las seja uma forma de reconhecimento, de orgulho pueril.
Não de aval para para as nossas incertezas existenciais.

A Idade que Tenho


E no quarto sem luz, sou menina.
Onde crescem os seios, os medos.
Dessas mudanças tão bruscas da vida que me fazem moça na ligeireza dos passos dos anos.
Acordo madura, com o gosto de muitos beijos nos lábios, agora abertos somente para uma outra boca.
E velha, ajeito as flores do meu jardim com a certeza de que não tenho certeza de nada e que a felicidade não segue traços feitos com mãos firmes, pois eles se tornam curvas, sobem rampas e se atiram em mergulhos assustadores, mas cheios de frescor.
Bebê, choro para tantos ouvidos que não me escutam, tantas mães que não me acolhem e não me amparam.
Sou raio de sol na minha infância onde tudo parece imenso, principalmente as esperanças, as alegrias pequenas, a rotina dos pães com manteiga, do leite fumegando na xícara, do olhar das gotas de chuva escorrendo na vidraça.
Tenho tantas idades em uma.
Sou pequena e grande, jovem e idosa, adolescente, forte, fraca, tudo junto.
Sou um mistério e uma resolução para mim mesma.
Sou boa, má, rica e pobre na crueza da existência.
Sou tão jovem
Tão velha.
Tão triste.
Tão alegre.
Tão humana.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Se você soubesse...


Se você soubesse.
Como os seus olhos ficam mais lindos quando deles emana calor.
Quando neles enxergo marolas azuis que dançam e crescem e nelas flutuo, sentindo o sopro do oceano, o cheiro do mar.
Se você soubesse.
Como a sua boca que se faz sorriso consegue acariciar a minha alma e trazê-la para mais perto de nós dois, seus sorrisos seriam menos escassos e a nossa felicidade maior.
Se fosse soubesse.
Que certas páginas devem ser pintadas por quatro mãos, não teríamos tantos desenhos menos vívidos no livro da nossa história.
Se você soubesse.
Seríamos os mesmos.
Porém com mais abraços e beijos.
Com mais cor.
Mais luz.
Mais amor.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

O que eu quero.




O que eu quero é paz.
De alma.
De vida.
De corpo.
De espírito.
Somente isso.
Tudo isso.
Tão simples.
Tão complexo.
Tão grandioso.

domingo, 13 de outubro de 2013

Bicho do Mato



Somos bicho.
Não do mato.
Mas da selva.
De pedra.
Que não morde, mas dilacera, faz em pedaços.
Não o corpo.
Mas todo o resto.
Bicho que grita alto.
Mesmo parecendo que faz silencio.
Bicho que rasga a carne para depois estancar o sangue, lambendo.
Fingindo pena, para melhor degustar o abate.
Somos bicho.
Quisera do mato.
Pois bicho da selva de pedra é duro, petrificado.
Gélido. Mumificado.
Anda em bando, mas não o abraça.
Faz multidão, arruaça, mas não protege.
Aglomera, mas não une.
Cria, procria, recria e mesmo assim não se apega.
Porque bicho da selva (de pedra) gosta de tudo que brilha.
Mas não é o sol.
Que vale.
Mas não é a vida.

Quadro


Ela era feliz.
Ela possuía uma vida tão triste.
Ela tinha os filhos longe, todos eles, e agora mais velha se sentia tão sozinha. Abandonada.
Ela tinhas os filhos crescidos, todos eles, saudáveis, casados, felizes, morando longe.
Eles ligavam quase todos os dias, pois sabiam que a mãe dependia desse gesto de atenção para não se sentir tão sozinha.
Ela sofria a perda do marido amado. Debulhava fotografias antigas entre os dedos retorcidos pela artrose.
Ela era agora uma viúva, a sobrevivente de um casamento pleno, com amor, suporte financeiro, cumplicidade, filhos esparramando sorrisos pela grande casa com varanda, com orquídeas e bromélias, com sol e com os piados das aves.
Ela se sentia pouco amada, pouco recompensada, pouco considerada.
O amor passou pela sua vida de todas as formas possíveis, intensidades. Agora era hora de descansar os pés cansados e degustar o mesmo sol de antes, só visto com outros olhos.
Ela plantou tanto...
O que houve?
Suas sementes desabrocharam tantas flores, sua força, seus atos, fizeram a vida, pariram laços.
Era hora de usufruir das pinceladas que se fizeram cores.
Era hora de pendurar esse retrato na sala.
Acordar de manhã e olhar para ele, agradecendo.
Se regojizando.
Mesmo que o lindo cenário seja apenas um retrato que deve ser visto de fora e que é dela, mas ela não faz mais parte.
Ela era feliz.
Ela possuía uma vida tão triste.
O que tinha dado errado?

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Envelhecer é uma Arte


Ela é magrinha.
Alta.
Bronzeada.
Veste uma vestidinho floral bem curtinho e nos pés, botas de Cowboy.
Os cabelos são longos e loiros e os óculos espelhados.
Uma bela menina de quinze anos?
Não, uma senhora com mais de cinquenta.
Os quarenta são os novos trinta? Pode ser, a qualidade de vida mudou, os cuidados com o corpo e a pele se intensificaram, a energia é outra, graças à Deus.
Mas, por favor, limites mulherada!
Não aceitar as limitações da idade é a forma mais triste de envelhecer.
Podemos ser magras, porém os joelhos, a barriga, os cotovelos e as mãos não serão mais os mesmos, assim como as motivações existenciais devem estar em outra frequência, caso contrário, estamos doentes da cabeça.
Somos felizes porque somos.
Não é a idade, o peso, o trabalho, o homem ao lado que nos faz feliz.
Nos fazemos felizes e o resto é complemento.
Nos aceitarmos é o primeiro passo. 
Aceitar a forma física, a compleição, a idade, a condição.
É tão bonito um cara de cabelos brancos e tão medonho os tons avermelhados daquele que tenta recuperar o viço na tintura de cabelo.
Padrões?
Sou absolutamente contra.
Apenas defendo que devemos ser o que somos, de verdade.
Porque vestir personagens para agradar à platéia deve ser requisito de artista.
E a vida deles não é nada fácil.

Morte Prematura




Sou tão falível que muitos dos meus planos feitos ao sol, não conseguem viver para poder ver a lua.