quinta-feira, 31 de julho de 2014

Mulher Pára-Raio


Não sei mais como andam as relações da geração alfabeto, mas nasci para ser pára-raio.
Uma mulher pára-raio é um estandarte que não enfeita, mas serve como calmante nas intempéries da família.
O filho discute com o pai. Ela vai lá e põe panos quentes na inflamação de ânimos, na erupção iminente.
Os irmãos brigam com facas de manteiga, prontos a perfurar alguma jugular, sem sucesso. Ela aparta, xinga, diz que irmão nasceu pra se amar e coisa e tal.
O marido chega sobrecarregado, cansado, pois passou o dia ganhando mais dinheiro do que os outros membros da clã, então tem os seus direitos fincados no maior degrau do pódio.
O que ela faz?
Engole o seu próprio cansaço, pede aos filhos que recuem um pouco nas tentativas de assassinato mútuo, deixa o jantar caprichado e faz perguntas que jamais foram feitas à ela, parecidas com "como foi o seu dia?".
Uma mulher antiga, daquelas nascidas na época em que a sociedade dizia que elas deveriam cuidar dos filhos e eles deveriam ganhar dinheiro, é mais forte do que braço de halterofilista.
Porque bater a porta atrás de si e deixar o pacote de exigências emocionais para trás em prol da batalha pelo pão diário não é fácil, mas é mais fácil do que administrar emoções puras, sem os retoques, sem as limitações do convívio social civilizado.
Porque em casa a maior parte da civilidade é deixada junto ao ato de afrouxar a gravata, largar os cadernos, chutar os tênis All Star para baixo da cama.
E mesmo que ela, a pára-raio, tenha ganhado um punhado de dinheiro com a Mary Key, com a consultoria em comunicação, com o free lancer em publicidade, a revenda de roupas, a tradução de livros ou até o turno de oito horas diário, será ela quem irá aparar as arestas, trocar a gaiola do canário e esvaziar as lixeiras do banheiro. É nos seus braços que cairão as cabeças cansadas e são as suas mãos que enxugarão aquele monte de lágrimas oriundas das batalhas dos seus amados, mesmo que elas sejam pequenas.
Serão tantos os copinhos a equilibrar, tantos os conselhos a dar, tantos os raios a absorver que ela até esquecerá que também tem energia elétrica suficiente para desencadear uma tempestade.
Uma tempestade que sempre acontecerá dentro dela.
Sem emanar luz, nem barulho.
Pequena aos olhos dos outros.
E irá durar até, silenciosamente, passar.
Ou até arrebentar e destruir cada pedrinha que se fez montanha.
Dentro do seu coração.

terça-feira, 29 de julho de 2014

O peso da fidelidade


Dia desses li um texto maravilhoso sobre fidelidade e lealdade e o peso de cada uma nos relacionamentos.
Não pretendo reescrever o que foi esplendidamente escrito, pois jamais conseguiria ser tão feliz, mas gostaria muito de colocar para fora o que já pensava há um longo tempo.
O tempo esse em que descobrimos que a vida é totalmente diferente do que sempre pintamos, não que ela sempre seja melhor, mas é que a nossa mão já se tornou ágil em pinceladas que formam o nosso cenário pessoal.
Quando jovem, demorei à amar, à me entregar às mazelas e prazeres do amor. Mas quando finalmente o fiz, descobri um lado meu que desconhecia: o ciúmes.
Meu último namorado, claro, não se esforçava muito em evitar as situações que me levavam à entregar a minha sanidade à esse sentimento mesquinho, então confesso que quase pirei.
Sabia o tipo dele, então quando saíamos ligava todas as minhas antenas receptadoras de perigo. Subentenda-se loiras.
Sofri na primeira gravidez do mesmo mal, não por me sentir feia (me achava linda), mas por sentir que, naquele momento, ele não me via como mulher, mas como mãe.
Mas o tempo foi generoso com as minhas ansiedades e a minha auto-estima reduzida e passei a me ver como sou: um ser humano que será melhor e pior do que muitos, jamais igual.
Então, chego onde queria.
O meu ciúmes era baseado em um sentimento superficial e tolo de que devemos ser sempre sexualmente atraentes (no meu prematuro entender, ser fisicamente infalível) na intenção de evitar que os olhos do parceiro nunca desviem de nós mesmas. O meu tributo deveria ser sempre maior, caso contrário o meu macho perderia o interesse.
Lembro até do meu obstetra (amigo da família do meu marido) me aconselhar à não engordar muito na gravidez, pois "afinal, o cara já namorou a Miss Brasil, não é mesmo?". 
Quanto sofrimento inútil, mas nenhum arrependimento, pois prefiro ter sido talhada à ferro do que ser uma versão envelhecida do meu passado.
Pois eis que passei por crises de choro, revolta, vontade de jogar objetos (os mais contundentes possíveis), até chegar ao Nirvana da paz de espírito, compreendendo que nada é preto no branco.
Depois de considerar a infidelidade a minha maior inimiga, a coloquei de escanteio ao dar o prêmio de honra ao mérito em desgraça à falta de lealdade.
Sim, ser leal, para mim, é o mais importante.
Ser fiel? Reneguei essa palavra ao lugar que ela merece: humanidade travestida de crime.
Não nascemos para nos sentir atraídos por apenas uma pessoa, mas nascemos para respeitar a que escolhemos como nosso parceiro de vida.
E o que é o respeito? 
Muito mais do que não pular a cerca. Muito mais.
É não desmerecer, não subestimar. Não coagir, não controlar, não ofender, não chantagear.
É ter a sua humanidade preservada sem precisar destruir a do outro.
Não estou fazendo uma apologia aos galinhas, que promovem o sofrimento alheio por conta das suas atitudes agressivas e escancaradas, que são muito mais fraqueza de caráter do que desejo sexual.
Estou falando de momentos como aqueles, quando estamos dentro do mar e uma onda nos derruba, mesmo quando sabíamos que o mar é cheio delas e não pretendíamos engolir um pouco d'água.
Uma vida a dois tem nuances que podem fazer um arco íris morrer de inveja.
O que interessa quando se constrói algo para ser perene é a atmosfera que envolve os responsáveis pela construção. Se ela for preservada, nada pode ruir com os alicerces de sustentação.
E o sexo será sempre bom.
O amor será fonte de felicidade, de paz.
E o resto será o resto.
Apenas.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

A família do meu marido


Dizem que quando se casa, não se casa somente com a pessoa escolhida, mas com a família dela.
Penso que cada caso é um caso, visto que muitos fatores como geografia, incompatibilidades e preferências podem fazer com que desejemos manter uma distância segura do ninho onde nosso amado nasceu.
No meu caso, fiquei comprometida na hora do sim, tanto com o moço quanto com a sua imensa família.
Começando justamente pelo tamanho - adoro famílias grandes. Sou louca por festas de Natal cheias de crianças berrando, idosos sentadinhos observando, gente falando alto, árvores gigantescas com pilhas de presentes em volta, cada um sendo entregue em meio à uma salva de palmas.
E sou completamente vendida para a alegria. Passo a vida farejando pessoas alegres e as perseguindo como um Perdigueiro em dia de caça. Fujo de ambientes pesados, pessoas pessimistas, hipocondríacas e, acima de tudo, briguentas. Tenho verdadeiro horror à bate-boca, grito, discussões em horas erradas, barraco. Horror.
Na família do meu marido encontrei esse algo que eu não possuía, aquela pecinha do quebra-cabeça que faltava para completar a minha paisagem interior.
Aos vinte e três anos mudei radicalmente de vida. Casei em agosto e em janeiro já segurava uma menininha doce e rosada nos braços.
A sensação que tinha era de como se uma mão gigantesca tivesse me tirado do mundo real e me colocado em um outro lindo, assustador, desafiador, totalmente novo.
Minha mãe saiu da praia para me dar um olá no dia do parto e retornar no outro, pois sabe, tinha lá seus compromissos aguardando. Eu senti um desamparo tão imenso que sentia como se alguém agarrasse o meu coração e o apertasse com força.
Quem me acolheu, por quinze dias em sua casa, foi a minha sogra. Ela que se levantava nas madrugadas, os translúcidos olhos azuis semicerrados de cansaço, tentando ajudar uma mãe que se apavorava fácil. Ela que preparou imensos copos de Ovomaltine com torradas e me levava de bandeja, antes da mamada da tarde.
A minha cunhada, depois de ter me colocado na banheira quando as contrações de parto eram insuportáveis, me serviu de irmã, professora, arquiteta, pedagoga (profissão que tem) e amiga, quando finalmente fui para casa.
São tantas as coisas que todos fizeram por mim, no decorrer desses 25 anos, que não tenho espaço para descrevê-las.
Apenas posso dizer que nossas energias se entrelaçaram e se fundiram de uma maneira serena e iluminada.
Tivemos nossos momentos nem tão perfeitos, mas eles fizeram parte do amadurecimento de nossa relação como família. 
Por isso, ontem quando, em mais uma visita cheia de novas e antigas histórias, minha sogra me abraçou e brincou dizendo que gosta mais de mim do que do filho, quando ela me abraçou dizendo que me considera uma filha, não me senti estranha, mas feliz.
Aquela felicidade familiar de uma criança reconhecendo o amor de sua mãe.

sábado, 19 de julho de 2014

Ontem eu briguei com Deus.


E foi um pouco feia a briga, como aquelas que temos com quem realmente amamos. Porque a indiferença é a forma mais pura de desafeto.
Na verdade foi um monólogo e não uma discussão, pois Ele fez o que sempre faz: espera e mostra mais tarde o que pensa de mim. Mas não falando, pois os falastrões são a versão mais cansativa de não ter razão.
Ele age.
Me abraçando, perdoando, mostrando que jamais entenderei a negação de querer entender tudo. Não posso ter esse direito agora, por mais beiço que eu faça.
Ponto final.
Tudo começou com um leve vibrar na minha cabeça, depois de eu ouvir a desesperança sair da boca das pessoas. Em relação à política, futuro, finanças, meio ambiente, educação.
A vibração aumentou com as notícias de um urso que é torturado lentamente em um zoológico, os vários assaltos novamente amedrontando o meu bairro, o cão jogado da janela de um carro.
O meu corpo se contraía e a minha mente, sempre leve e brincalhona, começou à se turvar com o peso de algo que eu não enxergava.
Mas fui escrever, correr, beber um cálice de vinho, tomar um banho quente, me encher de perfume e de creme adocicado. Fui agradecer o que sei que tenho e de sobra.
Então, depois de fazer da vibração um amontoado de palavras, eis que cliquei em algo errado. Sem querer.
Mas muito errado, feio, incompreensível, triste.
Um vídeo postado que mostra uma mulher que deixou a sua alma estacionada em algum lugar muito mais lúgubre do que um campo de batalha. Porque ela não atacava os iguais, mas um indefeso.
Primeiro a vibração me tornou surda, a adrenalina invadiu os meu sangue e o horror do que eu estava vendo explodiu em cascatas de lágrimas.
E raiva.
Por que?
Porque tantos ursos, cães, mortes, bebês não podendo ser bebês, fome, miséria, violência, sofrimento?
Falta de amor?
No meio da minha convulsão de dor, eu queria respostas.
Tu és Pai, me faz entender! Justificar, perdoar, aprender com lições tão doídas.
Tenho tudo e ter essa consciência me faz ter maior compreensão do quanto tantos sofrem. E o sofrimento alheio me foi dado por alguma razão que Ele quer que eu entenda como lição.
Briguei com Deus.
Queria entrar em uma igreja católica, evangélica, luterana e ficar gritando lá na frente como todos aqueles fiéis já gritaram com seus próprios amores, mas fingem que não. Fingem que amar é apenas tempo bom.
Amor é também questionar, se entristecer, chorar, ficar P da vida. É se sentir perdido, completo, vazio.
Chorei, me debati, mas não deixei de amar.
Voltei à ver as flores e esquecer as dores.
Eu apenas quis as explicações que não posso ter.
Nem Ele pode me dar.
Porque ainda sou muito pequena para assimilar.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Meus Assuntos Delicados


Me olho no espelho e fico totalmente fútil. Porque me entrego à vontade irresistível de ter uma borracha para apagar todas as sobras de pele que insistem em transformar contornos em lombadas, em sulcos, reentrâncias, riscos.
Mas não tenho essa borracha mágica que apaga cada pequena vida, sofrimento, angústia e aquele monte de preocupações que não viraram coisa pior, graças à Deus.
Mas apesar de estar em um momento físico delicado, tenho o privilégio de estar na melhor e mais arriscada fase psicológica de toda a minha pouco aventureira vida.
Quero ser um pouco mais rebelde, menos preocupada com o que pensam de mim.
Nada que me faça ser presa, executada ou assassinada, mas pequenas coisas que eu gostaria de experimentar e sempre me diziam que eu não deveria.
Uma delas (e uma das mais agressivas) é tosar os cabelos.
Cresci em uma família onde cabelo é sinônimo de quase tudo.
Eu era proibida de cortar.
Crime hediondo, inafiançável, sujeito à pena maior: morrer sem ser admirada.
Cresci com uma sede louca de brincar com a única coisa que realmente me pertencia, pois a liberdade era escassa.
Morei na Alemanha e no Canadá e queria ser tão autêntica quanto às alemãs que tinham os loiríssimos cabelos cortados de forma radical ou às canadenses que, por baixo das meias finas, ostentavam tatuagens imensas na panturrilha. 
Sempre idolatrei a ousadia.
Ser normal me assusta, me deprime.
Abomino estereótipos.
Loiras, cabelos compridos. Magras, altas, boas profissionais, más mães, boas mães, más profissionais, má isso, boa naquilo.
Então, finalmente chego aonde quero chegar.
Tatuei o meu corpo. A última tatuagem foi bastante grande.
Vou tosar os cabelos.
Mesmo quando todos dizem que vou ficar muito feia, muito mais velha, ridícula.
Não vou fazer isso para, mais uma vez, tentar ficar melhor.
Mas vou fazer.
Para finalmente me libertar.
Não do que eu penso que pensam de mim. 
Mas do que eu sempre quis que pensassem.

terça-feira, 15 de julho de 2014

A Banana


Sempre que começo à me envergonhar da minha pouca animação com o convívio social, aquele puramente social (subentende-se com pessoas pouco conhecidas), me lembro do episódio da banana e relaxo.
Eis que várias mulheres de meia idade enchiam as suas cabeças com conversas e caipirinhas em uma roda de cadeirinhas coloridas, na beira da praia de Atlântida.
O papo era dos mais profundos, migrando de compras em Nova Iorque para as bodas do filho de uma, como se pronuncia Louboutin de maneira correta, tratamentos estéticos, empregadas e afins.
Lá pelas tantas, depois do meu fígado estar muito intoxicado (não de caipirinha), uma das donzelas que nem lembro mais qual era, revelou que havia se submetido à todos os tratamentos estéticos oferecidos por uma clínica conhecidíssima pelas donas das boquinhas infladas. Todos.
A questão era que a eficácia dos tratamentos era baixa, exceto por um.
"O que retira aquela bananinha do glúteo".
No mesmo instante me virei para a locutora e questionei o que era "a bananinha do glúteo". 
Para minha surpresa, 50% do quorum sabia o que era e para a minha surpresa maior, todas começaram à se levantar para indicar quantas eram portadoras do defeito macabro, que consta em um traço abaixo do traço normal do glúteo. 
Os dedos iam apontando para a região, aquela gordurinha espremida entre o traço superior e o inferior, a...BANANINHA! 
Como o traço inferior é considerado flacidez, esta maldita gordurinha é muito mais perigosa do que qualquer banana de dinamite, pois explode, dilacera, liquida com a perfeição do bumbum.
A donzela havia se libertado deste castigo supremo, mas eu me vi sendo alvo de risadas conspiratórias e cúmplices, pois, como muitas das outras, era portadora do estigma.
Lembro que fiquei meio traumatizada no momento e quando saí para dar uma caminhada com o meu marido, confesso que fiquei olhando para todas as bundas alheias, femininas é claro, o que poderia acarretar em uma suspeita nada verdadeira ao meu respeito. Lembro também de me sentir injustiçada, pois mesmo malhando igual à uma condenada, tinha um defeito que era considerado coisa de gordinhas.
Mas duraram pouco as minhas preocupações e fui me lembrar deste episódio, hoje, depois de meio ano.
Senti um alívio tão genuíno e um orgulho enorme por me sentir deslocada na maioria dos grupos sociais.
Ah, e se eu fosse um pouco mais flexível, me virava e tascava um beijo na minha bananinha adorada, prova de que estou com a cabeça no lugar.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Foco


Eu me distraio com tantas coisas pequenas.
Na intenção de não sucumbir às imensas.

Bicho do Mato


Quando eu tinha quinze anos lembro da minha mãe perguntando o porque de eu recusar todos os convites para a noite.
Ela tentava me empurrar para a balada e eu declinava.
Sempre detestei a vida noturna e a encarei (mais vezes do que eu gostaria) para poder encontrar o cara que eu estava à fim, para me enturmar, fazer parte do bando e para me sentir normal.
Na praia sempre era mais admissível se entregar aos prazeres (?) da noite, visto que as férias, a pele queimada do sol e o calor eram bons motivadores para a ala dos notívagos, mesmo os menos dedicados.
Porém, nas bandas de Torres e Atlântida a noite começava lá pelas onze (um pré no Luz do Sol ou no Bali Hai ) com a famosa esticada na SAPT ou SABA e inicio previsto para a uma da matina. 
A minha vontade de sol, bike, caminhadas e mergulhos não suportava tamanho abuso.
Mas dos dezessete aos dezenove, fiz o possível.
Porém, agora quando não devo quase nada para poucos, me abstenho desses encontros, geralmente regados à muito álcool, muitas revelações de eterna cumplicidade, muitos elogios, abraços, beijos e risadas tão verdadeiros quanto as promessas do políticos em época de campanha.
Me nego.
Se desfruto de um gostoso jantar com aqueles que sei serem meus de verdade, saio desse encontro feliz e revigorada. Fora isso, dispenso.
Quem me conhece, sabe.
Não vou à coquetéis, nem desfiles, nem chás. Não gosto de festas, nem de dividir brindes com um monte de gente que não sabe nem a minha cor favorita.
Sou arisca, anti-social se preferirem assim.
Preciso mais do que uma taça de champanhe e um prato gostoso para me fazer feliz.
Preciso me sentir em casa. Com sintonia de assuntos, interesses e afins.
Caso contrário a minha caverna é o melhor lugar para fazer eu me sentir bem.
E sem a necessidade de mostrar os dentes em um sorriso que, na verdade, é um rosnar.

domingo, 6 de julho de 2014

Nossos Filhos


Minha filha mais nova completará 19 anos na próxima terça-feira.
A mais velha está com a idade que eu tinha quando a tive.
A mais nova saiu do colégio para a faculdade, arrumou um estágio e um namoro firme, tudo no mesmo ano. A mais velha se forma em dezembro, solta as tranças no seu próprio carro, já foi para o exterior sozinha (algo que fui fazer só aos 46), trabalha desde o primeiro semestre.
Duas mulheres e seus segredos.
Mas que nunca deixarão de ser os meus bebês.
Às vezes, quando converso com alguma aqueles assuntos sérios, meus olhos pousam nas mãos de unhas bem feitas (feitas por elas mesmas, diga-se de passagem), mas não são as unhas que me levam à um passado distante. É a mão e o seu exato formato que, outrora, rechonchuda e com covinhas, agarrava o meu dedo polegar com força enquanto sorvia leite dos meus seios. É a mão que sumia na minha quando eu segurava forte para atravessar a rua. É a mão que se elevava ao alto, espalmada, quando os barulhos da vida lá fora eram intensos demais para um recém nascido.
Elas, lindas por dentro e por fora, com seus Cabelos Cascata que emolduram o mesmo rostinho, a mesma boca que já sorriu um sorriso aberto e desdentado. Que já gargalhou das palhaçadas da mãe, já se escancarou em dores de ouvido, já emitiu gemidinhos enquanto segurava a mamadeira de Nescau.
Quando os namorados são os corpos abraçados e beijados com carinho, não me ressinto, pois o amor, mesmo imenso, se manifesta de diversas formas no decorrer da nossa longa existência e todo aquele ardor e necessidade infantil de me ter nos braços, terá crescido e modificado. Não acabado.
E virão os filhos delas.
E voltarei à pegá-las no colo. Um somatório do amor meu, delas, dos que elas amam.
Sei que vou receber uma nova lufada de ar e o meu sentimento de finitude será protelado ao ter novamente mãozinhas rechonchadas que se agarram aos meus cabelos.
E quando elas forem avós, quem sabe eu não renove novamente o ar que respiro, quem sabe.
Ou talvez eu já tenha sido tão renovada que esteja finalmente entendendo tudo.
Toda essa trégua que Deus nos dá, nos mostrando que viver não é fácil.
Mas é lindo.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Não quero ser uma menininha


Amo e odeio, ao mesmo tempo, quando ouço a seguinte frase: "você parece uma guriazinha!"
O meu  lado vaidoso se estica, tentando ultrapassar os meus míseros um metro e sessenta de altura, mas logo despenca corpo abaixo quando realizo todo o significado imenso escondido nessas quatro palavras.
Sei que tenho o privilégio de ser mignon, o que ajuda muito no quesito de esconder os anos, mas tenho 47 anos e nunca, jamais posso aparentar uma guriazinha. Posso aparentar menos idade, por diversos fatores como peso, altura, bom humor, roupas pouco sisudas, cuidados com a saúde, mas guriazinha é power.
Não quero aparentar o que não sou, quero ser uma mulher da minha idade com uma aparência agradável e me comparar à uma menina é um elogio depreciativo ao que me tornei.
Porque subentende-se que apenas uma mulher jovem pode ser interessante, bonita, desejável e me surpreende, pois nunca me senti tão interessante e de bem comigo mesma como me sinto atualmente.
Não vou mentir que fico feliz com as mazelas da pele, dos cabelos, dos músculos, com o passar dos anos, mas isso é muitíssimo pouco, perto do que ganhei.
A beleza jovem é radiante, mas também pode ser vazia. Que o diga Robert de Niro, Meryl Streep, Al Pacino (que, valha-me Deus, só melhorou e melhora), Diane Keaton.
Eu sei que o mundo não perdoa a velhice, mas não existe atitude mais depreciável do que não querer envelhecer e se transfigurar em uma versão velha de seus dezessete anos.
Dias desses, parada em uma sinaleira na rua do Shopping Moinhos, vi uma mulher alta caminhando pela calçada. Ela tinha os cabelos platinados até a cintura, estava muito bronzeada, usava uma micro saia e botas estilo cowboy, de cano alto. Tinha mais de cinquenta anos e a luta que ela travava com o tempo era ingrata. Parecia a vó da Barbie, modelo street. 
Muito triste.
Nada contra cabelos compridos, roupas joviais, mas a neurose de querer estacionar no tempo é um sofrimento para quem a tem e para quem convive com essa pessoa, pois ela vai querer o que não possuí e dessa necessidade outros planos impossíveis irão surgir.
Fico feliz quando dizem que aparento menos idade, pois isso significa que estou me tratando bem e isso é ótimo.
Mas não fico feliz em aparentar uma guriazinha, pois também desconfio que no exagero do "elogio" esconde-se a intenção de massagear um ego que se desconhece. 
Enfim, não sou mais ingênua, tampouco insegura.
Sou uma mulher madura que foi menina.
Foi estudante, namorada desse, daquele, chorou por alguns. Foi tenista da equipe da Sogipa, noiva, esposa, grávida.
E que venham mais vivências!
Que venha o futuro desse passado que ficou para trás.

terça-feira, 1 de julho de 2014

A Ressonância do Mal


"Por favor, chegue meia hora antes do horário" diz a voz doce do outro lado da linha. Como a minha descendência germânica quadradinha manda no meu lado italiano, chego antes da meia hora antes. Sabe, quero me liberar cedo para acompanhar a filha mais velha em uma outra consulta. Tenho tempo de sobra (mal eu sabia).
Entro no hospital pronta para a minha primeira vez dentro de um tubo claustrofóbico que vai descobrir as minhas mazelas humanas.
A sala de espera fervilha. O jogo Argentina x Suíça berra na televisão. 
Alcanço carteirinha, requisição, identidade.
Sento.
Sou chamada: "Alérgica à que? Medicação qual? Pinos? Diu? Facas perdidas dentro do corpo? Claustrofobia"? 
Não, não, não à tudo.
Pobre filha às voltas com os livros, pois estuda em meio aos locutores gritando e às pessoas gemendo à cada ameaça de gol.
Cabeceio. A filha bate foto, faz efeito me colocando brincos, batom e sombra e publica no snapchat, eu dormindo, com a mão ornamentada pela pulseirinha do hospital, tipo pulseirinha de balada.
"Mônica Inês"!
Me revolto mais uma vez com a minha mãe e sua mania de nomes duplos e sem nada a ver um com o outro.
Coloco uma aventalzinho bem fresquinho e apropriado para os dez graus que devem estar fazendo lá dentro, com o ar condicionado à pleno.
Uma moça me encaminha à uma cadeirinha confortável, bem no meio do vai e vem de médicos, enfermeiros e pacientes, eu e meu charmoso avental, eu e minhas charmosas pantufinhas de gaze.
"Alérgica à que? Medicação qual? Pinos? Facas perdidas dentro do corpo? Claustrofobia?"
Se eu não era claustrofóbica, naquele momento comecei à ser.
"Agora a senhora sente aqui e aguarde."
Eu, meu avental charmoso, minhas pantufinhas de gaze e arrematando, um cobertor por cima.
O quadro da decadência, pelo menos uma decadência quentinha.
Vi o final do jogo e tive o privilégio de assistir à reprise da novela mais imbecil de todos os tempos, tão imbecil que eu tive vontade de jogar alguma coisa na televisão. Mas me contentei em ficar enroladinha no meu cobertor e apenas virar a cabeça bruscamente para o lado ao denotar o meu repúdio.
E se passou apenas uma hora até eu ser chamada.
Ah, agora viria a verdadeira diversão.
De bruços, quase sem respirar, imóvel e dentro de um túnel com trilha sonora de rave (ao menos, a bondosa carrasca me deu fones de ouvido para aliviar o barulho) fiquei por muitos minutos. Os braços para cima ficaram dormentes, o chilique ameaçava desabrochar à todo o instante, mas eu controlava a respiração pensando em cascatas.
"Mônica, dá pra você respirar mais suave, pois a imagem está saindo tremida"?
Não respondi para não me comportar mal depois de uma conduta tão exemplar. Então pensei em mais cascatas e me imaginei uma astronauta de um filme cheio de coragem e superação. Mas de repente me lembrei de um filme de terror em que a menininha possuída por um espírito maligno faz uma ressonância e o espírito medonho tenta sair do seu corpo, dentro do tubo.
"Bem feito! Quem mandou gostar de filme de terror?" É a voz do meu marido me dizendo o que sempre ouço quando tenho pesadelos horríveis.
Mais rave.
Braços inexistentes.
Vontade de tossir.
O tubo começa a mexer, depois de quase uma hora.
"Prontinho, Mônica" você enlouqueceu com sucesso, ela esqueceu de dizer.
Saio para a sala de recepção e revejo todos os meus semelhantes, pobres coitados que aguardam a sua vez.
Não acredito que um idoso sobreviva, mas vou rezar muito.
A filha dorme, depois de três horas, sobre os livros, a consulta dela foi perdida, mas tudo bem.
Não é todo o dia que a gente é protagonista de um filme de terror.
E dos leves, eu sei.