terça-feira, 31 de maio de 2016

HOMENS (inspirado em textos reais)


Meu marido tem um amigo no Facebook que fiz questão de solicitar amizade depois de ler um texto que ele escreveu chamado MULHERES.
Ele, o marido, veio me mostrar o texto rindo, dizendo que era a minha cara.
Fui conferir.
Era.
Além de eu rir do começo ao fim, me vi ali, desnuda, estampada em palavras.
Eu, a rainha do emburramento quando braba, pois a brabeza me tranca na goela e provoca um silêncio súbito e espesso.
Mas haja visto que tenho nessa brabeza certos motivos, vou chupar (jargão publicitário, não confundam) a ideia e fazer a minha versão feminina.
Eis.

HOMENS
É ruim tu receber um Bebê Barbudo de mais de oitenta quilos chegando em casa de beiço virado.
Tu que limpou pátio, tratou dos bichos, varreu a casa, cozinhou o que tinha, passou, estendeu, limpou e ainda trabalhou fora naquele trabalho mais trabalhoso do que rentável.
A porta abre de sopetão, um aviso prévio do mau humor, ressentimentos com o mundo e vitimização e tu já sabe que o passado vai cutucar o teu ombro e o leite materno vai descer rapidinho, mas não para alimentar teus filhotes que já estão quase fora de casa, mas pra servir de consolo para um bobalhão que não sabe chorar sozinho, coisa que tu faz desde que nasceu, diga-se de passagem.
A taça de vinho para no meio do caminho e o gole reconfortante é impedido pela sensação de que o filho mais velho, mais exigente e mais carente chegou em casa de pá virada.
Aí tu começa a te dar conta que mesmo com os filhos casados, os originais, esse daí vai mamar pra sempre no teu seio já esgotado e a tua cabecinha começa a pensar em uma forma de desviar do assunto, aquele de sempre com muitos nomes que tu já ouviu e não sabe de onde, com muitos políticos corruptos, contas infinitas, transito dos infernos e muito mais.
Tu não arrisca uma conversa e enfia a cabeça dentro do forno que está assando o amendoim, assobiando o tema do filme Uma Linda Mulher com a esperança que o Bebê Barbudo desista de mamar, pois ele não pretende estragar o teu belo humor.
Vai pensando, parideira.
Ele já vem com a conta do Hipercard (aquele que ninguém aceita por ser uma tremenda porcaria) na mão.
"Tu lembra onde tu gastou isso?"
Tu tira, relutante, a cabeça do forno a tempo de ver ele apontando para uma conta de cento e doze reais divididos em oito parcelas fixas de quatorze.
"Só pode ser a Panvel, com esse valor."
Tu rebate.
A boca pequena e virada em um sorriso contrário abre o suficiente pra dizer a célebre frase:
"Mas como tu gasta em farmácia!"
E tu já nem lembra se é ou não a velha Panvel porque ele já sentou na posição de mamar.
E vem aquele monte de falatório que ele só reserva para ti, parideira, o mesmo que é esquecido com os amigos (e sabe-se com quem mais), onde o sorriso é real e não invertido.
E tu tenta lembrar, já no terceiro gole de vinho, daquele bom humor só reservado pra ti, lá quando tu ainda tinha umas bochechas mais saudáveis.
Então, depois tu deita quentinha na cama e vai tentar sonhar com o Richard Gere, com um Martíni sendo bebericado na beira de alguma praia do Caribe, onde não existe louça pra lavar, onde tem tempo livre pra dormir à vontade.
É quando tu sente a mãozinha gelada do Bebê Barbudo tocando na tua cintura e ele já não é mais tão bebê nesse momento, mas um bobão bastante esquecido.
E tu também.

sábado, 14 de maio de 2016

O Buxo de Plástico


Ele mora em uma bicicletinha de ferro pintada de branco, em um recuo da fachada da casa, onde se pode espiar pelos vidros a minha sala.
Quando o vi aninhado, verde e redondo, no Vaso Bicicleta esperando por quem o comprasse, me apaixonei perdidamente.
O enfeite cabia exatamente no vazio da janela e ao molhar a  grama os meus olhos enamorados pousavam sempre na delicadeza e perfeição do meu pequeno buxo de plástico.
Mas a paixão cedeu ao costume e ele virou a rotina das minhas regas quase diárias.
Vez ou outra ao entrar apressada na casa voltava os meus olhos à ele, mas eu havia deixado de varrer com um pincel as suas pequenas folhas para que elas continuassem verdes e lustrosas.
Eu havia esquecido de girar o guidão e reposicionar a imitação de plantinha podada, de assoprar as sujeirinhas ocasionais, de empurrá-la para a proteção da parede em dias de temporais.
Eu ainda o amava e amo, mas havia me acostumado a receber sua diminuta beleza sem perceber o quão frágil ela era, muito mais do que o ferro da bicicleta que a abrigava.
Eu esqueci de dar.
O recebia com gratidão por fazer mais poéticos os meus dias, mas certa da perenidade de sua beleza, certa da oferta diária do seu conforto, deixei de cuidar.
Há pouco tempo olhei para ele como o olhei quando ele ainda não me pertencia.
Sorri com a lembrança da alegria que ele sempre me deu e fui, depois de muito tempo, ajeitá-lo nos braços da bicicletinha de ferro.
Então, nas minhas mãos ele quebrou.
Dezenas de folhas de plástico se desfizeram ao meu toque, secas, sujas e duras, espalhando um tapete verde nos tijolos da janela.
Não era para sempre o seu viço e a sua oferta de beleza, pequenino?
Acreditei demais na sua força, na sua garantia da minha felicidade e esqueci de varrer com carinho o pó que lhe cobria?
Fui egoísta ao querer sempre receber a sua singela oferta de alegria sem dar nada em troca?
Ele mora em uma bicicletinha de ferro pintada de branco, em um recuo da fachada da casa, onde se pode espiar pelos vidros a minha sala.
Mas jamais será o mesmo.
E o vendo, desfolhado e feio, lembrarei para sempre que todos os nossos afetos devem ser cuidados, pois existem mortes muito mais tristes do que a de uma pequena, bela e redonda plantinha de plástico.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Bichos livres

O coração começa a acordar e vibra.
Os passos.
Eu e você entramos no videoclipe das nossas vidas embalados pelo som que nos serve de trilha.
Eu e você expandindo as artérias, fabricando prazer no ritmo das passadas, na pele que aquece, no vento e sol que assopram êxtase no nosso rosto.
Tudo passa rápido, mesmo as fagulhas de pensamento.
Como a visão de uma janela de trem em movimento.
Nossas dores escorrem em gotas pelo corpo e vão evaporando salgadas e já sem peso.
Eu e você.
Que escolhemos correr.
Com os cenários embalados em melodias, com a chuva fina, o sol de verão e a lâmina seca do vento gelado.
Não temos tempo para os problemas que ficam pisoteados no esforço de uma lomba qualquer que nunca é tão íngreme para o nosso fôlego.
Declaramos o nosso amor ao próprio corpo na intensidade de fazê-lo sentir-se vivo.
E quente.
Eu e você que temos esse segredo de felicidade guardado nos nossos fones de ouvido, nos tênis cansados, nas pernas fortes, no varal repleto de roupas de esporte.
Somos bichos livres.
Eu e você que corremos.
E temos esse segredo.
De sermos selvagens.
No suor, no pisar, no desviar, no olhar e atravessar.
E ao recuperarmos a respiração tranquila, ao voltarmos às cadeiras e rotinas, somos outros.
Bichos livres que se submetem às amarras.
Até escancarar a boca e expandir as narinas na próxima trilha.
Na próxima estrada.

sábado, 7 de maio de 2016

Mãe


Sou mãe de cabelos e de pelos.
De barbas crescidas e de penugens douradas em moleiras recém nascidas.
Sou mãe de genros, maridos e sogras.
De flores que pedem água, de terras que pedem para serem remexidas e adubadas.
Sou mãe de garfos e facas que se desorganizam e se sujam na desobediência de casa cheia, na alegria de refeições quentes servidas.
Sou mãe de lençóis cheirosos, das próprias palavras de que tudo vai ficar bem nos dias turbulentos e chuvosos.
Carrego no coração e no colo as preocupações com o trabalho, com as contas, as ruas, os animais, as crianças, os sem casa.
Uso meu corpo de escudo e meus dentes de aviso à tudo que considero ameaça aos meus filhos. 
E tenho tantos, mesmo que eu nunca os tenha carregado nas minhas entranhas, pois os cultivei para sempre nas minhas veias, no meu sangue e na minha alma.
Sou mãe dos choros e das alegrias, das conquistas e das derrotas.
Me alimento da felicidade dos meus amores e morro feita em pedaços nas tristezas que os corroem.
E não, não sou mãe porque gerei filhos.
Serei mãe até ter sido a mãe que meus irmãos precisaram e a mãe dos meus pais que estarão velhos.
Então, mesmo não sendo mais os olhos que guardam, já não sendo mais mãe e sendo um futuro outro qualquer.
Terei a grandiosidade de ter sido mulher.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Lacuna


Somos feitos de espaços.
Alguns preenchidos, outros transbordando.
Muitos vazios.
Somos seres incompletos pela carência e fartos pela abundância.
Pelo excesso e pela falta.
Por recheios falhos, poucos ou nulos.
Abastecidos pela fé de que existe algo mais do que lacunas.