terça-feira, 26 de julho de 2016

Bebê Mendigo


Ele é velho.
E negro, magro, manco, com a barba espessa e as roupas rasgadas.
Pede esmolas em uma sinaleira demorada e alcança o chapéu para evitar que quem o ajude tenha contato com as suas mãos.
Ele sabe que as suas mãos são evitadas.
Assim como os seus olhos.
Assim como ele todo.
Então, mudo, estende o chapéu.
Eu estendo a minha mão e alcanço algumas moedas, evitando não as mãos, mas o todo e os olhos.
Meu olhar é sempre rápido, pois a miséria e a dor do mundo me cai como pedra no estômago e fico dias sem poder digerir as outras coisas que me caem nos braços.
Estendo a minha mão com dinheiro (e quando posso com outros recursos) como a única forma que possuo de minimizar o sofrimento de quem nasceu de uma mãe, assim como eu.
Sou testemunha de um bebê que virou mendigo e não questiono como será usada a minha ajuda para esse adulto que perdeu tudo.
Então, dou. 
E neste dia dei novamente e ouvi pela primeira vez um muito obrigada, ao invés de um acenar de cabeça.
E esse muito obrigada, com uma voz que eu não esperava, me fez olhar de verdade.
Olhar nos olhos.
Junto com o todo que eu evitava.
Ele é negro, magro, manco, com a barba espessa e as roupas rasgadas.
Mas não é um velho.
É um jovem que perdeu tudo e que se veste da velhice na intenção de não receber o que poderia receber da vida, caso não tivesse nascido um bebê mendigo.
E foi neste dia que eu envelheci muitos anos.
Mais tarde eu recuperaria a minha própria idade.
Mais tarde ele chegaria mais perto do fim.
Eu, ainda tendo sonhos no mundo que o evita.
Ele, no estender de uma mão que carrega um roto chapéu.
Pois na selva em que vivem os homens existem bebês que já nascem perto do fim.
Mesmo quando fingimos que não.

Eu dou.


Quantos beijos você precisa para restaurar o seu calor?
Quantos abraços posso lhe dar para sarar a sua alma?
Me diga.
Que dou.
Quando tantos não se envergonham do ódio.
Por que nos envergonharemos do amor?

terça-feira, 12 de julho de 2016

Tourada


Ele brincava muito.
Com os cabelos dela, com a curva suave das suas coxas, com o nariz franzido de brabeza.
Brincava com as alegrias e a fazia se sentir criança cuidada.
No inicio.
Passou a brincar com certos medos e inseguranças que ela carregava pesados no peito.
Com as dores dela.

Com o cansaço que julgava bobo.
Brincava falando de outras mulheres que o bajulavam, de outras mulheres que tinham um pouco mais do que ela.
De conquistas que não eram dela, de passos errados ou não dados.
E as brincadeiras ficaram engraçadas somente para ele como uma tourada é divertida para o touro.
E no perfurar de cada espada, no sorriso e na gargalhada sádica, ela sangrava mais um pouco.
Quando ela pensava estar acostumada com as feridas, correu.
Quando ele pensava que os ferimentos eram parte da diversão de ambos, se surpreendeu.
E na arena vazia, ferido, a culpou.