domingo, 28 de setembro de 2014

Long Board


Ele andava tão ocupado.
Em trocar pensamentos, em forma de conversa, com todos os seus afetos.
Guardava na retina cada gesto que acompanha palavra, cada ruguinha no canto dos olhos que acompanha sorriso e fazia questão de ser apenas ouvidos, depois de tanto tempo sendo discurso.
Se ocupava demais em deitar ao sol, deixando o calor inundar a pele e criar desenhos psicodélicos nas pálpebras fechadas.
Doou todos os ternos, assim como os sapatos, alguns ainda nem usados.
Rasgou muitos papéis.
Criou uma pele grossa na sola dos pés, mas deixou de ter bolhas nos dedos mindinhos. 
Tirou da garagem - para quatro carros - aquela Long Board pintada com duas listras vermelhas no centro e passou três meses na praia.
Ele e o cachorro, do qual ele lembrava mais do latido no pátio do que da pelagem longa e dourada. Finalmente ficaram amigos, apesar dele entender pouco de amizade,  mesmo tendo mais de mil nomes na sua lista de contatos.
Se separou da mulher.
Se uniu aos filhos, pois lembrava das mãos rechonchudas tentando salvá-lo, depois das mãos adultas que continuavam com a mesma vontade de ferro nas tentativas de puxá-lo de algum buraco escuro que ele mesmo cavara.
Não lembrava de nenhuma mão feminina em tempos de dificuldades.
Ele andava tão ocupado.
Em desatar os nós e formá-los laços.
Pois ele havia estado tão ocupado em construir tanta coisa que esqueceu que o tempo não era dele, mas do mundo.
Justo agora.
Que ele não tinha mais tempo.
Mesmo agora.
Que ele se ocupava, finalmente, cuidando da felicidade.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Frida


Eu acredito em destino.
E em anjos.
Sou profunda e absolutamente espiritual, o que não impede que eu ame sapatos.
Mas o meu cerne, a minha vida é regida pelo meu lado esotérico e minha absoluta fé no sobrenatural, por mais que ele nos seja invisível (outras vezes nem tanto) como o ar que respiramos.
A Frida, a minha amada cadela barbuda, sapeca e descabelada é um exemplo prático, aos meus olhos, da afirmação do que acredito.
Nunca vou para o litoral gaúcho.
Naquele ano fui.
Alugamos uma casa em Xangrilá, há milhares de quadras do mar. Mas quem se importa quando se tem pernas?
Em uma manhã iluminada pelo sol de fevereiro, saí para a minha corrida matinal, quase vespertina, na beira da praia.
Confesso que sou uma verdadeira nulidade em termos de GPS particular, pois, invariavelmente, me perco. Certa vez, morando em Florianópolis, na saída de um shopping no Estreito, fui tão, mas tão para o lado contrário do que deveria, que, pedindo informação em um posto de gasolina, descobri que estava quase em Blumenau, com duas crianças adormecidas no banco de trás, depois de três horas de tentativas em voltar para o meu amado lar.
Em Xangrilá não foi diferente.
Antes de sair, memorizei as características da nossa rua, mas descobri depois que todas as ruas e casas se parecem, naquele mundinho de asfalto, areia e calor, para meu tão familiar sentimento de desespero.
No momento que fiz a curva na rua errada, eu vi.
Algo pequeninho, minúsculo, meio preto, meio cinza, se mexendo no fervor dos paralelepípedos.
Gelei.
Com cinco cães em casa e mais de vinte recolhidos das ruas, quis que o vultinho fosse apenas um pano levado pelo vento ou, quem sabe, um Quero-Quero ciscando longe de casa.
Não era.
Comecei à caminhar, chegando pertinho.
Então, meu coração (ai, esse meu coração...) abriu uma porta e cedeu espaço, antes de eu olhar feio para o meu peito e dizer: "fica frio, endurece um pouco, afinal, o mundo é duro, oras."
Mas no meu coração não mora só gente, não,
mora céu, mora chão.
Mora bicho, lágrima, sorriso.
Mora vida, seja ela qual for.
E ela, que não ia passar daquele dia, passa todos os dias comigo. 
Ela é amor puro, energia, sorriso, carinho, esperança, tudo isso que bombeia, como sangue, e dá força.
Porque ela é muito mais do que um cãozinho.
Já virou livro publicado.
Essa bolinha de vida que vive de me arrancar gargalhadas.
Que de pequeninha não tem mais nada.
Que se avolumou em corpo e em afeto e me salvou quando desviou a minha tristeza nas coisas.
Que, para os outros, é apenas um animal de quatro patas e pelo duro.
Para aqueles que não acreditam nos anjos.
E nunca se perdem e se acham nas ruas.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Ela, essa monstra!


Sim. Ela, pois é feminina essa palavra e não poderia ser o contrário.
Essa coisa que nos tira o sono, nos massacra, nos rouba energia, transfigura os nossos prazeres em pecados. 
E ela adora atacar as mulheres, o alvo mais vulnerável para ela se esbaldar enquanto saliva de prazer.
A culpa.
Quando eu era editora de revistas, em uma delas mantinha uma crônica, na última página.
Certa vez, resolvi escrever sobre culpa e quase não consegui ler todas as mensagens de desabafo e identificação em relação ao assunto.
Adivinhem? Todas mulheres.
Pobres almas atormentadas por essa fera de dentes pontiagudos, prontos para perfurar a nossa tenra alma.
Como um mascote monstruoso, a culpa acompanha as mulheres, fielmente, lado à lado, no decorrer de toda uma história onde nem a fumaça da queima de sutiãs afugentou esse ser faminto.
Ela fica empoleirada na nossa mente nos dizendo que "não!", não deveríamos ter transado tanto na nossa juventude e "sim!" devíamos transar mais com os nossos maridos, pois se não dermos conta de tanto recado, há quem dê, "sim, senhora!" - ela diz mostrando os caninos podres em uma risadinha de escárnio.
Não coma, não beba, não dê folga no puxa, levanta, estica. Trabalhe, trabalhe, trabalhe. Não compre, não se sinta bonita até pesar 38 quilos! 
Nunca somos, nem fazemos o suficiente por nossos filhos, maridos, amigos, chefe porque a sociedade trabalhou tão bem em adestrar a monstrinha, em benefício próprio, que fez de nós marionetes patéticas de nós mesmas.
Marionetes que puxam a pele do rosto até não existir mais mobilidade, retocam as raízes dos cabelos de quinze em quinze dias, tem vergonha de dizer que não ganham dinheiro (apesar de trabalharem feito escravas), colocam peito, bunda, coxa, tudo em excesso, se recusam à envelhecer. 
Culpa de quem? Ora, de quem mais? Da culpa!
Pois se ficarmos para trás (em qualquer quesito, pois mulher é competitiva às raias da loucura), lá vem ela mordiscar o nosso tornozelo para lembrar que nossos passos estão lentos.
E sabem o que é o pior de tudo?
A maioria dos culpados, só o é por ser alguém extremamente correto.
Porque os bandidos, sociopatas, cruéis, vagabundos e toda a ordem de desprovidos de adjetivos qualificáveis, são aqueles que nunca sentem culpa.
Por isso, antes tarde do que nunca, eu digo: relaxem!
Vamos ser sempre piores e melhores do que os outros e, sim, tentamos ser melhores como pessoas, mas somos humanas, pelo amor de Deus!
Está na hora de dar um basta nessa companhia perniciosa que nos impede de ter uma felicidade plena, mesmo que imperfeita, pois perfeição não existe.
Está na hora de chutar pra bem longe essa coisa desagradável.
Ela, essa monstra!

sábado, 20 de setembro de 2014

Dois Óculos


Era dela a memória seletiva.
Quando precisava se lembrar dos próprios erros.
Ah, mas guardava na ponta da língua cada deslize ou falha alheia.
Porque tinha dois óculos guardados na gaveta.
Um em que, quase como binóculos, via cada detalhe das faltas dos outros e outro que tornava tão diminutos os seus próprios erros que a grandeza de ser ela mesma se tornava cada dia mais densa.
Então ela reinava absolta nas suas certezas.
Certeza de que proporcionava mais do que recebia.
De que a acidez das suas palavras eram facilmente confundidas com brincadeiras.
Certeza de criança que tapa a cabeça contando uma verdade depois de um adulto lhe convencer de que as mentiras piscam vermelhas na testa.
Quem a amava (no princípio, pois não se ama para sempre quem não caminha ao nosso lado) protelava verdades, se magoava em silêncio e perdoava rápido sem dizer palavra.
Porque para ela Dizer era faca afiada. 
Mesmo que para os outros fossem tentativas de sol depois de uma tormenta interminável.
Ela vivia de dedo em riste.
Apontando.
Tudo em todos.
A falta de tempo, a chatice, a falta de dinheiro. A acomodação, a preguiça, o cansaço, a indisponibilidade.
Não ouvia.
Mas queria ouvidos de prontidão.
Criticava.
Mas queria sempre aprovação.
Pedia muito.
Se doava pouco.
E um dia esqueceu para sempre um dos óculos no fundo das suas lembranças.
E se tornou vestida do outro.
E passou a se enxergar enorme.
Seus afetos, mesmo falhos, ficaram bem guardados e esquecidos.
E ela ficou feliz.
Até perceber que estava sozinha.
Pois só enxergava à si mesma.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

435


Esse número representa o número de postagens que tenho nesse blog.
Quatrocentos e trinta e cinco pensamentos íntimos, muito íntimos, que se fizeram palavras na necessidade de me ler.
Pois só me leio como pessoa quando transformo em palavra a chuva torrencial que me inunda, me transborda, me afoga, mas também me salva.
Comecei cedo à me salvar escrevendo.
Eram agendas, no princípio, com reclamações, conquistas e reflexões. Tudo escrito com o dia marcado. As guardo até hoje, pois me mostram a evolução da minha alma ao longo de 34 longos anos.
Fui uma filha que escrevia cartas para me explicar em um crescimento que nem sempre compreendia.
Fui esposa que discutia a relação no papel e o deixava embaixo do travesseiro ou na mala pronta para viagem.
Sou mãe que, muitas vezes, desabafa em mensagens no celular.
Porque acredito muito na palavras.
Elas são sentimentos verdadeiros, pois foram elaboradas em um processo bem mais delicado do que simplesmente permitir o jorro de coisas ditas que podem ser mais ditas com a irracionalidade, com o humor do que com a verdade.
O texto não mente.
Nunca.
Porque é no silêncio que escutamos o nosso coração e é no silêncio que ele fala.
Nem sempre falo de mim, mas de coisas que preciso colocar para fora, pois foram ou são algum cenário pintado na paisagem da minha vida.
Deus deve ter desencapado os fios com os quais fui feita, pois nada me passa despercebido. Nada.
Uma aranha que escala a parede e luta com a umidade, na hora em que estou no banho.
A luz no verde das minhas plantas.
Os diversos trinados que ensurdecem os ouvidos para as mazelas do mundo.
O azul, o laranja, o rosa, o breu do céu.
O cavalo cansado, a bebida do mendigo, a violência e a beleza da existência.
E já percebi que não é a qualidade dos meus textos que encantam as pessoas, mas a forma como consigo, vez ou outra, penetrar nos anseios de cada um.
Tenho queridos amigos que sempre me dão retorno após eu escrever algo.
E noto que marco cada um com aquilo que representa algo significante na sua vida.
"Aquele foi o teu melhor texto!"
Não.
Foi onde tu te encontrou.
E se faz festa dentro de mim quando percebo que sou capaz de fazer alguém se encontrar, se identificar, sorrir, chorar e sentir.
Pois nesse momento abraço, dou a mão, sento junto, faço companhia e amo cada um que entra nas profundezas do que realmente sou.
E sou muito feliz de tocar algo muito mais profundo do que a pele.
E de ser tocada também.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Sempre dá tempo de se amar.


Hoje eu ouvi, de duas mulheres, afirmações que me fizeram pensar.
Já penso demais, mas tive uma overdose de pensamentos.
A primeira, por volta dos sessenta anos, minha antiga vizinha querida, era compulsiva por limpeza. Enquanto eu banhava os meus pés nas águas turquesas do condomínio, ela, lá no alto do sexto andar, batia tapetes, massacrava o aspirador de pó, quarava lençóis na sacada. Todo o santo dia.
Eu tapava os meus olhos do sol, olhava para cima e me perguntava "o que faz uma doida dessas querer limpar tanto?"
E olha que me considero uma mulher caprichosa.
Pois bem, a segunda, por volta dos setenta e cinco anos, querida amiga, vizinha, culta, adoradora dos animais, fluente em francês e inglês. Uma mulher que deixou de se olhar no espelho, pelo menos, há duas décadas, jogou a vaidade no lixo, adotou o moletom como uniforme (em cima e em baixo), é viúva, solitária e vive de pantufas.
Então, eis que encontro a primeira na hora do almoço depois de quase sete anos sem ter tido notícias. Depois de muitas risadas e bate-papo, o meu cérebro, traumatizado, lasca a pergunta: "Tem limpado muito?"
"Não limpo mais. Fui me tratar."
No meu pensamento, gargalhei. Bati palmas, peguei na mão e beijei.
Ao vivo, consegui ser menos intensa.
A segunda.
Eu percebia que tinha que repetir várias frases, enquanto os nossos cães rasgavam a grama das casas na correria dos saudáveis e na minha visita de calçada. Não falava nada, pois sempre entendi que ela considerava à si mesma como a última pessoa merecedora de regalias ou atenção, então me desdobrava em atenção, mas não mencionava os cuidados falhos com ela mesma.
Percebi que a surdez tinha cedido e falei (novamente a minha sede de ser sem pensar):
"Tu estás ouvindo bem hoje."
"Ah, coloquei aparelho. É caro, mas a gente merece se tratar bem, não é mesmo?"
No meu pensamento me ajoelhei. No meu pensamento enchi os olhos de lágrimas e solucei.
Ao vivo, consegui ser menos intensa.
Sim!
Merecemos não limpar tanto para afogar a nossa necessidade de ser pega no colo. Merecemos um aparelho de surdez, pelo amor de Deus, pois merecemos ouvir cada trinado, cada farfalhar, cada agito, merecemos sentir prazer mesmo que o prazer tenha nos sido ensinado como pecado, como gasto desnecessário.
Ser feliz é se ouvir.
Cada dia, minuto, segundo. E não por isso deixar de ouvir o outro, pois nos fazer felizes já nos faz mais capazes de fazer tantos outros felizes.
Não quero limpar, fingir, pedir, me esquecer.
Tanto.
Não quero trabalhar, consertar, protelar, me violentar, permitir.
Tanto.
Não quero limpar, não escutar, apaziguar, não enlouquecer.
Tanto.
Não quero não me permitir.
Tanto.
Não queremos.
Eu e tu.
Pois vamos ter que desembarcar em algum momento.
E ninguém deve sair de uma viagem chorando .

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Inveja


Tem coisas que a gente não explica.
Um corpo doente que desiste de sofrer e recupera a vontade de viver.
Um pensamento nosso que cai, assim, na cabeça do outro e ele vira aquelas palavras exatas que dançavam na nossa mente. 
Uma pessoa que não víamos há anos e, de repente, a gente a encontra, duas ou três vezes, nos lugares mais inusitados do mundo.
O nosso cãozinho que lambe as nossas lágrimas e as sente.
Um olhar de compreensão e reconhecimento quando a gente menos espera.
Um desconhecido que nos parece íntimo.
E a inveja.
Essa coisa tão feia que tenta apagar o sol alheio.
Que tenta encher o nosso dia iluminado com nuvens carregadas de vazios.
Porque não é fácil sorrir, mas o invejoso pensa que o nosso sorriso é grátis e que temos um jardim de coisas boas que nascem do nada. Da sorte. Essa maldita que deixa o rancoroso repleto de sensações de injustiça.
A luz nasce de um lado e morre do outro, nos dias que se sucedem e que formam os anos.
Quem inveja o outro só percebe o dia que nasce e não enxerga que para ele existir é preciso morrer o corpo no descanso das noites.
É preciso perder algumas horas para ganhá-las, perder algum tempo acariciando para poder sentir o calor de uma mão macia no nosso rosto.
Porque quem se ressente da felicidade dos outros nunca soube ser feliz, pois entende a felicidade como algo reto, barato e superficial.
Quem tenta turvar a luz do próximo por despeito é feito nuvem de temporal.
Parece densa, assustadora, significante.
Mas passa rápido e deixa a certeza de que é preciso um pouco de negritude, um pouco de tormenta para o verde ficar mais vívido.
E para que a força de tudo que tem amor nas raízes se torne imensa.
Perene.
Então as nuvens correm assustadas pelo vento.
Aquele que remexe deliciosamente os cabelos.
E leva embora o peso leve dos maus agouros.
Enquanto o céu dá o azul da sua graça.
Um azul só reconhecido por poucos.
Aqueles que não invejam nem maldizem os outros.

sábado, 13 de setembro de 2014

O que importa para nós


Ela viu.
No momento em que ele começou a tecer o primeiro fio frágil do seu sonho.
Ela viu.
Porque o amor vê coisas invisíveis, pois observa com outros olhos.
E ele segurava cada fiozinho com a força do coração, a força mais poderosa do mundo. E escalava o sonho, que era seu, com as veias cheias daquelas coisas que alimentam os que sonham.
Ela conhecia, desde o princípio, o tipo de dor que o esperava no final, mas quem ama, às vezes, precisa suportar a dor do outro, pois ver a dor de quem se ama é menos doído do que ver ele desistir de viver.
Porque sonhar é conservar flores no peito e é possível vê-las murchar, mas é impossível aceitar que outras mãos arranquem suas pétalas antes delas finalmente tombarem.
E ela jamais seria essa mão.
Ela seria a mão e o colo que o receberia com as novas promessas das sementes guardadas depois que a primavera fosse embora e o inverno congelasse as esperanças.
Ela sabia que os invernos devem ser passados juntos e não interessa que o frio seja mais intenso para o outro, não se questiona a intensidade do frio alheio quando se ama, apenas se dá o máximo de calor.
Então o sonho dele ruiu. Ele sofreu. Virou gelo, secou seu colorido, ficou com fome, sede e dor.
Que passou.
E então ele viu.
No momento em que ela começou a tecer o primeiro fio frágil do seu sonho.
Ele viu.
E ele jamais a faria desistir.
Pois, no final, ele estaria ali.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Me dá Primavera!


As minhas ruas andam cheirosas.
Cheirando à perfume doce de flor.
Quisera eu saber o nome de cada uma delas.
Mas o meu contentamento não necessita de palavras.
Enquanto ergo o meu queixo ao alto, fecho os olhos e inspiro.
Prefiro não saber.
E sentir.

domingo, 7 de setembro de 2014

Oração das Peruas Aflitas (e nada jovens)


Que eu tenha dinheiro, meu bom pai, para meu rosto ficar como bundinha de bebê quando ele derreter e eu virar a réplica de um Sharpei.
Mas que, enquanto essa desgraça não acontecer, o botox não aumente muito de preço, por favor.
Que o meu megahair continue atraindo os olhares dos homens e que as pontas não sequem depois de tanto babyliss e chapinha, oh lord!
Me livra daquelas rugas horrendas nos joelhos e das manchas senis nas mãos.
Protege o bico fino das minhas botas e o brilho das minhas jóias. E se elas forem falsas, dear jesus, que nenhuma das minhas amigas perceba.
Não permita que eu seja alvo dessa gente eco chata quando eu usar as minhas peles, pois só elas me dão o ar selvagem e chique que tanto mereço.
E não deixe que oncinha saia de moda! Nunca!
Me livra dos pés de galinha, dos dentes da cor de dentes de verdade e das ondulações nos cabelos.
Não permita que as minhas mechas fiquem manchadas.
Salve o coquetel, desfile e confraria de cada dia.
Que eu seja uma iluminada no momento de postar as minhas fotos no Facebook e que eu saia sempre linda. Que ninguém perceba que fotografei a minha linda casa, a minha linda bolsa, o meu lindo relógio, a minha linda louça, a minha linda mesa de jantar, para mostrar o quanto sou poderosa, mas que eles entendam que aquela cuia de chimarrão, o fake de trabalho ou o cão (de raça) minúsculo na foto, seja o motivo da postagem.
Me livra dos homens de pouca poupança, de ter que procurar muito tempo uma vaga na Padre Chagas, dos carros baratos e das compras na Renner.
Me afasta de gente pobre, trabalhadores que não são o chefe, mas o empregado.
Me afasta de viagens que não sejam internacionais e, se eu tiver que ir para algum desses lugares humildes do estado, que seja um condomínio em Xangrilá. Ou Atlântida, valha-me deus.
E se tu, meu bom pai, me negar todos esses pequenos desejos que, ao menos, eu continue sendo tão nobre de alma. 
Mas que todos os responsáveis pela minhas perdas sofram de todas as formas de chagas possíveis, enquanto caminharem pela terra.
amém.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O Segredo


Elas eram cunhadas.
O marido de Ana, Caio, era advogado, seguindo os passos dos pais. Os irmãos de Caio, Renata e Ricardo, também haviam optado pela mesma carreira. Exemplar, diga-se de passagem.
Já Ana era de outras paragens, outros ideais. Se encontrava na vida sendo professora de educação física, era adepta de florais, só usava tênis nos pés, trançava os cabelos e fugia de qualquer roupa com botão.
Adorava Cat Stevens, tinha oito gatos, era vegana e chamava a atenção pela beleza dourada, de sardinhas no nariz.
Tinham a mesma idade, ela e Renata, a cunhada. Mas também era só isso que elas tinham de igual.
Renata com a sua vida medida por fita métrica, vivia impecável, educava o filho com mão de ferro e tinha um apartamento em Paris. Fazia pilates, mechas californianas, botox e massagem.
Nas reuniões de família, Ana se ressentia de Renata e Renata se ressentia de Ana, pois viam, uma na outra, alguma coisa que haviam perdido no decorrer da passagem do tempo. Ana se culpava por ter levado as coisas, assim, tão na flauta e a cunhada se culpava por não ter se permitido adocicar os dias com menos rigidez.
Se davam bem, é claro, riam todos como todas as famílias fazem, contavam piadas, levavam as suas especialidades para serem degustadas e elogiadas, ajudavam na louça.
Às vezes, ambas se pegavam pensando a mesma coisa: se não teriam sido mais felizes sendo um pouco diferentes, se não teriam feito mais felizes os seus maridos, evitado tantas brigas.
Mas amizade entre elas era algo improvável, impossível.
Até aquele dia.
Em que ambas se encontraram.
De surpresa, de repente, em uma explosão de reconhecimento e terror.
Na saída de um motel.
Sem seus maridos.
Diga-se de passagem.
Se tornaram as melhores amigas.
Dividiam confidências, contavam os podres de seus cônjuges, as performances de seus amantes, os infortúnios de seus trabalhos.
A família recebeu com encantamento essa mudança de comportamento.
Elas trocavam olhares cúmplices nos jantares e mensagens no WhatsApp sobre as novidades. 
Renata passou a se sentir mais solta, a se vestir com roupas mais coloridas. Ana cortou um pouco os cabelos, trocou os tênis por sapatos mais femininos, fez peeling na pele.
E a vida foi seguindo adiante.
Um pouco mais leve para ambas.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Nua


Hoje tive uma vontade louca de me ver nua no espelho.
Inteira.
Depois de tanto tempo.
E lembrei das tuas mãos ávidas percorrendo cada curva que não é bela.
Mas é minha.
A tua sede desperta o meu corpo.
O meu corpo. A minha alma que tratei de proteger com tantas camadas dele.
Lembrei dos teus olhos fechados, os cílios, o semi sorriso na boca.
Hoje tive coragem de me ver nua no espelho.
E me amei tanto.
Porque tu me ensinastes à me amar.
Me amando.