terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Algodão Doce


Somos nuvens.
Mesmo querendo ser o vento, esse que nos arrasta e nos tinge de nanquim, e nos derruba em forma de temporal.
Somos leves e brancas, densas e escuras, levadas pela vontade que assopra e nos desmancha na hora de sermos alimento à uma boa colheita, salvação para a dureza e aridez da terra.
O sopro que vem de cima e nos movimenta.
O sopro que decide quando tudo começa, acaba e ressurge de outra forma.
O sopro que nos faz água, vapor ou suavidade.
Que nos faz fúria, rendição e tempestade.
A vida é um sopro qualquer.
Que carrega, que movimenta.
Que faz crescer, entumescer, desabar, liquefazer.
Que faz cavalos e bichos engraçados no céu, onde dedinhos gorduchos descobrem unicórnios e boquinhas diminutas tentam abocanhar um pedaço de algum doce que nunca existiu.
Somos nuvens.
E sonhos.
E furacões.
Tsunamis.
Resguardo do sol escaldante.
Alívio.
Brevidade no existir.
Porque esse vento todo nos movimenta.
Nos cria, nos mata, nos ressuscita.
Mesmo sem compreendermos.
O sopro Dele.
Que nos faz tão escuros quanto a noite.
E tão claros quanto um algodão doce.

domingo, 14 de dezembro de 2014

O tempo de tudo acontecer


Exatamente há um ano tive uma lesão no pé chamada fascite plantar. Atingiu apenas o canto direito do meu calcanhar esquerdo.
Viciada em exercícios, tive que conviver com a consequência do exagero e com uma dor de ver estrelas, principalmente ao levantar da cama, de manhã.
Remédio, muito gelo, alongamentos e fisioterapia.
Ah, e interrupção de qualquer exercício de impacto. Logo eu, a rainha do Bate Pé no Chão, louca por corrida e tênis.
Como não me entrego às dificuldades, fui pra bike, pro transport, mantive a musculação e descobri que nada é insubstituível nesse mundo.
Aos poucos, fui conversando com o meu corpo e entendendo o que a dor quis me dizer.
Aos poucos, voltei a correr e, um dia (um pouco antes do que eu deveria), voltei à jogar.
No meio da partida meu pé gritou, furioso por eu colocar as prioridades da minha mente acima das do meu corpo e, ressentida, deixei a raquete pegar todo o pó que merecia.
O tênis, esporte que foi o meu primeiro esporte, me traiu.
Recuperei novamente a saúde do meu pé, voltei à correr, mas nunca mais joguei, mesmo curada.
Por que? Porque o tênis foi desligado de dentro de mim. 
Fiquei com medo, fiquei frustrada, fiquei triste e o tempo dele existir foi tirar umas férias (curtas ou eternas) em um lugar qualquer.
As pessoas me cobravam, diziam "que pena, uma jogadora tão boa", me convidavam, eu declinava. 
Eu sabia que não sentiria mais dor, mas apenas não queria mais jogar.
Assim como sabemos que podemos voltar para coisas e pessoas que, de um modo ou de outro, nos provocaram dor, mas simplesmente não podemos mais.
Não por enquanto.
Passamos a olhar com estranheza aquele momento que fomos aquilo que não queremos mais ser.
E mesmo ainda tendo amor, sabemos que se nos forçarmos, seja por imposição nossa ou de outros, podemos até não nos machucar, mas não vamos dar e receber o melhor daquilo que ainda não está no tempo de acontecer.
O nosso tempo.
Hoje, depois de uma noite de sonhos com raquetes e saques, tive vontade de jogar.
Muita, irrefreável.
Fui.
Joguei mal, suei muito, ri e fiquei brava com os meus erros.
Mas a dor não deu sinal de um dia ter, sequer, existido.
Estou pronta de novo.
Sempre estamos prontos para retroceder, perdoar, recomeçar, terminar, iniciar.
Mas é apenas o nosso tempo que vai dizer.
O tempo de tudo acontecer.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Cresça


Adoro viver o meu lado criança, colecionando bonecas, rolando no chão com meus bichos, vendo filme de medo, dormindo até mais tarde, esperando ansiosa por um presente, chorando e querendo consolo.
Porém, o lado criança, que ando vendo muito ultimamente, que se recusa à ter obrigações chatas, que se frustra com contratempos e que se enfurece com as contrariedades, desse passo longe.
Me recuso aceitar quem enxerga a felicidade como um corda retesada, imaculada e reta, pois a felicidade está mais para nuvens de uma poeira brilhante que vivem oscilando à nossa volta, subindo, descendo, onde, vez ou outra, é preciso ficar na ponta dos pés para alcançá-las e poder aspirar o seu cheiro doce.
Adultos podem e devem brincar, mas têm a obrigação de saber que a vida não é brincadeira.
Não tolero que o bom humor seja uma consequência do Tudo Dando Certo, muito pelo contrário.
O bom humor é uma resposta certa à questões dolorosas, pois só ele faz com que seja tolerável os anos letivos nessa escola difícil e dura.
É muito fácil ser o Camarada Sorriso quando se está de férias em Cancún, mandando ver na tequila, no sol, nas compras e no corpo à corpo com o parceiro de viagem.
Muito fácil, mas nada por aqui é fácil.
As flores podem se dar ao luxo de viver conforme as estações, nós não. A perenidade da nossa força não pode depender das amenidades do clima.
Gente baixo astral, pessimista, agourenta, briguenta e amarga, me enfurece.
Mimados, então, passo reto.
Deus sabe o que passei nessa vida e eu sei que eu poderia ter sido muito pior do que sou, apesar de saber que também poderia me esforçar mais para melhorar tudo que ainda tenho em dívida.
Mas acredito no melhor.
Nos piores momentos.
Não sou o Rambo, mas tento evitar, com um sorriso, as explosões no meu pé.
Os ventos fortes tremulam as minhas águas.
Mas não deixo que o meu oceano interior seque.
Tenho a chuva, tenho o sol, as calmarias, a brisa.
Não é um vento que vai me esvaziar.

sábado, 6 de dezembro de 2014

Ando Mudando Ultimamente


A mudança de tudo que existe, principalmente de sentimentos, é uma das coisas, ao meu ver, mais fascinantes que existe.
A vida é muito Louca Varrida para que a gente não se transmute.
Afinal, fomos aquelas coisinhas rosadas e medonhas que saíram de um outro corpo, feito Aliens, tão puros quanto bebês focas.
Depois, se empunharmos armas e tirarmos vidas, se cuspirmos no seio que nos alimentou ou nos tornarmos tão rosados e medonhos, mas não da mesma forma, tudo isso deve-se à mudança, essa palavrinha fantástica que pode ser tão maravilhosa quanto maléfica.
Darwin já defendia essa coisa toda que evoluí espécies, mas que adora trabalhar com a sua melhor aliada.
A dor.
Só se muda quando algum calo começa a apertar no sapato.
Ou quando tudo o que nos cerca modifica e temos ou queremos fazer parte desse ato contínuo de existir com nuances e não com o absoluto de ser sempre igual e estático.
Até porque não somos iguais nunca, a partir do momento que temos o nosso traseiro nu exposto ao mundo. 
Pois bem, nesse decorrer de muitas décadas, mudei várias vezes.
E o mais bonito é que só me dei conta da mudança quando espiei o passado e me estranhei, farejando um cheiro que se parecia muito comigo, com alguém que não sou agora.
Precisava tirar férias em lugares quase selvagens para poder, da janela do meu quarto, ver a brisa sacudir as copas das árvores.
Tenho as copas das árvores dançando para mim em cada abrir de janela da minha casa.
Minhas férias agora são outras.
Meus desejos também.
Tenho outras necessidades, outros gostos, outro corpo, outros cabelos.
O meu mundo mudou e não sou a mesma faz algumas horas.
E não sei o que serei nas próximas.
Depende do calo, do sapato, de tudo que me aperta e modela.
Depende da impetuosidade do formão que ajusta as minhas asperezas.
Essas cascas todas que calejaram nossas almas.
Almas.
Elas mesmas.
A única coisa, nessa vida, que não muda.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Capricho


Tinha muita coisa triste naquela organização de pratos dela.
Todas as noites ela alinhava a louça, estampada com diminutas flores, em cima da toalha rendada, comprada em uma remota viagem à Fortaleza.
Tudo aos pares.
As facas de manteiga, as colheres de chá, as xícaras com facetas e alças torneadas.
Uma organização noturna para uma manhã previsivelmente sossegada, onde ambos desfrutariam de jornais, torradas e café.
Ela saberia a quantidade certa de leite na xícara dele, a temperatura ideal, o limite de dourar o pão.
Sabia que acusações veladas surgiriam entre uma mordida e um gole.
Enxergava, enquanto pousava cada item no seu devido lugar, o olhar que receberia por trás de uma cortina de líquido fumegante.
Ela havia se acostumado a existir no tilintar de talheres, no cheiro de roupa lavada, nas golas engomadas e no frigir do alho impregnando o ar com cheiro de aconchego.
Havia se acostumado a sorver alegria sem ter escolhido a forma de alegrar-se.
Estaria tudo certo enquanto tudo estivesse imaculadamente limpo e organizado.
Estaria tudo certo enquanto cada partícula de pó removida tivesse o gosto de alguma coisa perdida para sempre.
Porque tinha muita coisa triste naquela forma silenciosa dela gritar.
Naquela mania de checar, inúmeras vezes, a fechadura da porta.
Estava tudo certo na mesa do café da manhã.
Do almoço.
Do jantar.
A casa estava um brinco, as janelas alvas, o chão brilhando.
Tudo no seu devido lugar.
Dentro dela nada poderia ser encontrado.
Tudo  havia desaparecido atrás da sujeira, bagunça e nojeira à que ela havia se submetido.