sábado, 18 de junho de 2016

Aqui embaixo


Lá do alto.
Ele pousado no que mais próximo do céu existe.
O mais próximo do céu que algo fincado na terra e feito dela alcança.
Lá do alto no longilíneo cipreste, ele observa.
Essa vida rasteira que aqui acontece.
Com o sol iluminando todos os tons de penas que ele carrega.
Com a cabeça que gira e os olhos astutos, recortados e um pouco severos.
Ele observa.
Os cães que latem, os carros que correm, as armas que disparam nas pessoas que caem.
Os gritos de raiva, os choros de perdas, os bebês com fome.
As plantas cortadas, os afetos interrompidos, as mágoas guardadas.
As máquinas.
Em um bater de asas.
Os amores completos, as mãos estendidas, os joelhos dobrados em prece.
Lá do alto.
Ele vê.

E ouve.
Todo esse barulho inútil.
Todo esse barulho que acontece abaixo do céu azul, cinza, chuvoso, nublado.
Ele pousado.
Testemunha dos nossos infinitos passos sem trégua.
Ele voa.
E no abrir de asas sobrevoa as felicidades em forma de casas, de chaminés fumegantes, de jardins coloridos, de gatos dormindo nos telhados ensolarados, de piscinas com crianças em sorrisos e boias coloridas.
Sobrevoa as dores dos acidentes de trânsito, a vida difícil dos gambás e dos camundongos.
E fecha as asas nas copas densas das árvores enquanto os pés sem sapatos se aconchegam nos jornais e congelam.
Lá do alto.
Onde só existe o barulho do vento e os gritos de vida.
Dele e de outros pássaros.
Onde ele encontra conforto ao retornar do mergulho arriscado.
De tudo que acontece aqui embaixo.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Amada


Mais do que um espelho que lhe mostre o capricho do traço perfeito no côncavo delicado dos olhos.
Mais do que um espelho que reflita toda a poesia escondida no querer ficar bonita, nos lábios pintados de rosa, carmim ou dourado.
Uma mulher precisa de olhos que a estudem e leiam.
E no calor desses olhos que se semicerram em um sorriso suave, ela precisa ouvir em silêncio "eu sei, mulher, que essa beleza inventada no rosto é a sua fome ainda forte de ter a vida para sorver."
É a sua vontade de querer ser amada.
Pois uma mulher precisa de mãos que a toquem - não distraídas - como ela tocou tantos filhos reais ou inventados.
Que acariciem os seus cabelos e percebam o cheiro novo do shampoo recém comprado.
Que acariciem a sua pele e percebam que ela ainda se perfuma como flor, ainda brota, olha para sol e se estica ao céu.
Ela pode se desfazer em mil pedaços se souber que os seus amores estarão inteiros.
Que esses amores terão aprendido com ela a serem os donos do mesmo colo e amparo que, um dia, essa mulher precisará que sejam também dela.
Pois ela é montanha, mas também é água.
Mais do que palavras soltas no ar de um impulso qualquer.
Mais do que promessas de sonhos futuros.
É no agora, no deitar em lençóis usados que ela precisa da surpresa de um abraço.
Pois, um dia, quando ela estiver cansada e a finitude da vida estiver conversando com ela, ela vai lembrar.
Mesmo sem batom nos lábios, mesmo sem forças para se esticar ao céu.
Toda a beleza vai morar no sorriso, no colorido intenso e lindo.
De ter se amado.
E ter sido realmente amada.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Quando nada fizer sentido.


Quando nada fizer sentido.
Procure algum lugar onde o mar, o rio, o lago possa ser visto de cima.
Abra a janela dessa casa na colina, abra os olhos na beira do penhasco, finque os pés na inclinação do morro, tenha o vento segurando as cordas e as cordas segurando o seu corpo.
Acima da imensidão da água.
Quando nada fizer sentido.
Seja a nuvem que lânguida, suave e lenta suspira sua sombra nas ondas ou marolas e deixa tatuado nas gotas o deslizar tranquilo de uma viagem que nunca acaba.
Seja a nuvem que aceita virar água para em seguida olhá-la de cima.
Quando nada fizer sentido.
Seja o brilho do sol que ofusca e tinge de dourado todo azul, verde, marrom ou cinza.
More nas asas que sobrevoam e nos barcos que singram.
Namore o mistério do horizonte.
Perscrute os movimentos que não ousam espiar o ar.
Respire.
É preciso sentir para poder respirar.