domingo, 28 de junho de 2015

Cão Sem Dono


Ela lhe dava sexo.
E companhia.
E ajuda nas pequenas coisas da casa, nos consertos e pinturas de rebocos envelhecidos.
Mas não lhe dava uma coisa.
Afago.
Como cão que oferece a cabeça, a barriga e as costas, ele procurava aquela mão de dedos longos, a acariciava e esperava receber o toque que nunca tinha.
Ela lhe tocava, apertava, arranhava, mas não afagava.
Não rolava a pontinha dos dedos por sua barba rala, nem afundava a mão nos seus cabelos crescidos demais. Não escorregava as palmas nas suas costas, não delineava com as unhas suas orelhas e sobrancelhas.
Não procurava entreabrir os seus lábios para brincar com seu sorriso.
E, Deus, ele precisava disso. 
Porém, pedir afago, como o gato que se enroscava nas pernas dela, não lhe parecia correto.
Então, ele morria um pouco a cada dia com a sede da mão quente, com o deserto árido da falta de afeto.
Construíram sonhos, uma casa, economias para tirar férias na Europa, planos de futuro.
E quando, finalmente, ele lhe disse do que precisava, ela foi embora e lhe chamou de louco.
E sendo o louco que era, vendeu tudo.
Ficou meses sem sexo.
Perdeu peso e alguns amigos.
Até o dia em que, abatido, sentiu uma mão pousar como uma pássaro no seu braço.
Uma mão que subiu e desceu no movimento suave de um beijo lento.
E como cão que oferece a cabeça, a barriga e as costas, ele recebeu o que merecia, o que tanto queria.
Até ser feliz para sempre em um abraço.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

RE Tudo


Para se viver feliz nesse mad, mad world é preciso RE sempre.
É o RE que nos molda e talha, fazendo com que o encaixe na existência seja mais fácil e pleno.
REcomeçar, REinventar, REbobinar, REssurgir, REerguer (se), REcriar (se).
Acontece a toda hora e instante e quem aceita, suaviza todo esse emaranhado de sentimentos que nos constroem e nos mantém.
São novas formas de enxergar a vida e à si mesmo, fazendo de cada dia uma busca intermitente ao sentido de existir com alegria.
E não podemos recusar essa alegria como se ela fosse um fardo supérfluo a ser carregado com culpa ou vergonha.
Ela nos pertence e se precisarmos mudar a direção dos nossos passos no intuito de encontrá-la e capturá-la, que possamos ser corajosos ao fazê-lo.
Ao mudar de cidade, de trabalho, de casa, de corte de cabelo, de hábitos e de afetos que nos definiram por tempo demais, podemos vir a descobrir que éramos mais acomodados e tristes do que sequer imaginávamos.
O primeiro passo nessa caminhada de REdescobertas pode ser aquele aperto silencioso no peito.
Pode ser o sufocamento na mesmice do velho trajeto de todos os dias aos antigos lugares.
Pode ser a estranheza de hábitos outrora tão ordinários, essa estranheza que vem em forma de perguntas como "o que estou fazendo, afinal?", "o que eu quero?", "o que me falta?", "por que ando tão irritado?".
E na digestão, muitas vezes lenta, destas respostas, vamos construindo um esboço, um plano para RE.
Alguns passam por essa vida esperando infortúnios, aceitando a dor, a dureza e a dependência corrosiva da prostração cômoda.
Aceitando a segurança linear do mais ou menos.
Se for preciso inventar palavras como REperdoar, REamar, REolhar (se), que se invente.
E se tivermos que inventar um REnascimento sem morte, que assim seja, pois na verdade somos uma nova versão de nós mesmos a cada dia que amanhece.
E essa versão é totalmente de responsabilidade nossa.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Minha Praia


Existe essa praia.
Onde caminhamos solitários e afundamos os pés na mesma areia que dividiremos passos.
Com aqueles que caminharam antes ou depois de nós e deixaram lá suas pegadas e impressões e sentimentos sobre o mar.
Existe essa praia.
Com mar revolto e escuro, cristalino e calmo, frio e morno.
Uma praia onde todos passam, brincam nas ondas, se afogam, deitam ao sol, queimam a pele, aproveitam a brisa e correm, apressados, do temporal que vem sem aviso.
E depois de chorar por aquele que foi entregue ao oceano, de curar o inchaço da pele vermelha e ardida, de descansar das braçadas e das brincadeiras e das pernas cansadas de escalar a areia, voltamos para mais um dia.
Caminhando ao lado de alguém ou apenas caminhando para si.
Relembrando o dia de ontem, tentando prever sinais de climas bons ou ruins pela frente.
Se guardando do sol, se abstraindo do agito com a fuga temporária na página de alguma revista.
Mergulhando sem respirar por tempo demais, para se sentir vivo o bastante ao engolir com força o ar, ao voltar.
Se arriscando em se precipitar ao fundo, sentindo alegria imensa em se afastar ao máximo na intenção de vê-la de longe.
Essa praia que é a mesma.
Mas que parece tão grande ou pequena, tão linda ou comum, tão solitária ou tão cheia de buzinas, gritos e risadas.
Que é tão nossa quanto de todos.
Mas que mora única dentro de nós.
E sempre irá morar.

domingo, 21 de junho de 2015

Certos Lugares Escuros


Mesmo com o sol brilhando, certos lugares permanecem escuros.
Esquinas e cantos que abrigam derrotas.
O dia era lindo na intenção de amenizar o frio intenso.
Calçadas cheias de mantas em voo, óculos escuros, botas de cano longo.
A pressa de abraçar sucessos acelerando as batidas dos saltos, esvoaçando os cabelos.
A vida seguindo no sol e no frio.
Ele ali.
No meio do frenesi bonito das roupas de inverno, na cama improvisada, no recuo da calçada, na porta de entrada de algum comércio que deixou o sucesso de lado, enfim.
Ele ali.
Com uma juventude e uma loirice que não combinavam com os olhos inchados, a pele curtida do sol, com o abandono e a miséria.
Naquele lugar escuro. 
Em um dia cheio de luz.
Ele que teve alguém que o embalou no colo e pensou em um nome para combinar com as penugens douradas da cabecinha de bebê.
Mesmo em um amor que pode ter durado apenas horas e revoltas.
Mas que lhe deixou um Fernando, Marcelo, Adriano, Lucas, Pedro, para existir.
Nasceu para viver na claridade quando a mulher lhe deu luz.
Essa luz que não mais lhe pertence e que o faz invisível na multidão que caminha e que também tem um conjunto de letras para se definir.
O dia era lindo na intenção de amenizar o frio intenso.
E eu o vi.
Não sei o que fazer com isso, Fernando, Marcelo, Adriano, Lucas, Pedro.
Eu também, muitas vezes, sinto que não sei o que fazer com o Mônica que me faz estar aqui.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

O Intruso


De vez em quando ele abandonava o peso da realidade para ficar caminhando, como um intruso, dentro da própria cabeça.
Naquele despertar cedo demais, onde a luz do dia ainda não brilhava e a as asas dos pássaros ainda estavam fechadas.
Era quando ele transitava pelo que ele havia sido.
Entrava na antiga escola, aquela que não lhe dava notas boas, mas havia lhe oferecido o calor de muitos amigos.
Ouvia os conselhos ácidos e rancorosos dos professores de religião que tentavam fazer do seu Deus, um Deus mal e vingativo.
Voava nos aviões que o levaram às cidades, aquelas que ele fez parecer sua casa no período da sua vida que não sabia o que era um lar.
Como intruso, mesmo não sendo, molhava o travesseiro com as lembranças boas e com as que lhe pareciam ruins naquela época, mas que eram boas, afinal de contas.
E no farfalhar de certas asas, na luminosidade de uma janela, acabou entrando no que agora era.
E caminhou, olhando o corpo que estava ali, imerso em lembranças e cobertas.
Fechou as portas do que foi, sentou no chão do quarto e prescrutou o homem que estava sendo.
Esse homem faria sorrir o intruso que viria se apoderar de suas lembranças em dias que estavam por vir?
Era fácil saber o que foi, difícil saber o que realmente era e impossível conhecer o que seria.
Foi feliz? Era feliz? Seria feliz?
Teria cabelos brancos, rugas e todas aquelas coisas que todo mundo tem. Perderia dinheiro, teria problemas no trabalho, com os filhos, com os vizinhos. Iria ter Natais, mas netos, não se sabe. Iria reclamar da vida e da política, cuidar da saúde, pagar os impostos, trocar de carro.
Ou nada disso, pois poderia ser totalmente diferente do que era.
Ou simplesmente não ser mais.
E seria feliz?
Quem deveria saber?
Ele ou o intruso que sabia demais?

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Amor Mar


Mas que mar é esse que quase me levou nas suas ondas e me fez sucumbir à falta de ar?
Ele, que vem com força ou manso e penetra entre os meus dedos e cabelos, salitra os meus olhos ou os enche das visões mais lindas que eu poderia sequer imaginar.
Quando, deitada nos seus braços, flutuo na sua serenidade e recebo o embalo de amante doce que quer me agradar.
Quando, deitada nos seus braços, ele me permite ver o céu e as nuvens, enquanto me carrega em marolas cheias de paz.
Ou se arremete com a força das ondas que me derrubam e me machucam nos grãos duros e finos de areia que me amparam e seguram.
Mas que mar é esse cheio de surpresas e belezas, que esconde segredos e caprichos exigentes de água que não nasceu para se domar.
Essa imensidão que muda de cores e de humores, que leva e guarda vidas dentro da profundidade, que se faz brilho e escuridão, que permite e impede.
O que é o amor se não o mar?
Tão novo a cada dia, tão conhecido a cada instante, tão confiável quanto instável.
Frio, quente, alívio e sufoco em ondas que quebram na pele, recuam em respeito e avançam sem parar.
Esse todo Amor Mar que permite que o naveguem.
Que permite que o engulam e o coloquem na boca.
Que o rasguem e o explorem.
Que é capaz de fazer afogar.
Quero mergulhar em tuas águas.
Sempre.
Prefiro os riscos do que deixar de amar.

domingo, 7 de junho de 2015

Sinto muito, meu amor.


Fui criada em apartamento.
Meu refrigério para a sensação claustrofóbica de ver a vida de cima e à distância eram as férias, onde eu desfrutava dos prazeres de uma casa.
Há onze anos me mudei para a zona mais bonita da cidade e pude, finalmente, contemplar as copas das árvores deitada na minha cama e ouvir o trinado dos pássaros pertinho dos meus ouvidos.
Foi então que me apaixonei perdidamente pela zona sul.
Como amor adolescente, entreguei cada partícula do meu ser à esta paixão e todas as suas peculiaridades, desde os lagartos tomando sol no asfalto, a serenidade do rio, as ararinhas e seus gritos estridentes, o clima de praia e descontração, as idas ao supermercado de saída de banho e sandálias de borracha.
Trincava os dentes ao ouvir alguém falar da distância e sempre perguntava "distante do que, afinal?"
Como cria da Avenida Carlos Gomes, jamais supunha que eu poderia me enraizar em um lugar tão distante do que fui.
Mas minhas raízes andam se tornando frágeis, pois toda a esplendorosa beleza de uma região ainda não dissecada pela civilidade tem se mostrado cansada, assim como eu.
A corrida na orla, uma das minhas maiores fontes de alegria e prazer, agora me entristece com tamanho descaso pela exuberância e magnitude da natureza.
Prostituição à luz do dia, despachos e seus ratos, cabeças e carcaças de bichos em rituais religiosos, velas queimando troncos de árvores, furtos à todo instante, cães abandonados, sujeira indescritível. 
Calçadas quebradas, com crateras ou empilhamento de pedras, obras que desrespeitam a passagem, avenidas que são acostamento de areia, dezenas de animais atropelados.
O que era a poesia do rústico está se tornando um arremedo de cidade grande sem as vantagens de ser grande, com as mazelas do crescimento abrupto.
 E os tentáculos apertados desse crescimento andam sufocando a beleza pueril e bucólica de um lugar que deveria crescer, feito suas árvores, para o alto e não para baixo.
Crescer não só com shoppings ou empreendimentos, mas com respeito pela preservação da alma singular de ser único.
Que está ficando ordinário.
Imagino o amargo na boca de quem viu o passado desse pedaço de cidade. 
Eu? Sou apenas amante recente que ainda tem a coragem de tornar seu, algo que pertence à história.
Mas mesmo recente, sinto toda a dor de ver partir aos poucos a paixão que me arrebatou.
Sinto toda a dor de ver que se apossaram do meu bem querer, pessoas como eu, diferentes na forma de tratar, entender e preservar os esconderijos relutantes e ainda vivos de luz.
Essa luz que faz brilhar tudo que ainda não sucumbiu à dor e à voracidade do bem individual.
Sinto muito, meu amor, mas tenho que dizer.
Nossa relação está frágil, pois mudaste nas mãos de quem quer o teu mal.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Gordura no Fogão


Certo dia, minha sogra (uma pessoa muitíssimo ligada em limpeza doméstica) estava de visita na minha casa.
Depois de fazer o almoço, fui cuidar da louça e ela sentou-se, mãos apoiadas languidamente à mesa, olhinhos argutos de uma pessoa treinada para ver sujeira, conversa rolando solta.
Quando, finalmente e esgotadamente terminei a limpeza do fogão, ela falou:
- Tem que retirar os bicos acendedores para a limpeza ficar perfeita.
Olhei para os bicos acendedores e eles soltaram uma risadinha de puro escárnio para mim.
Não é que eles saíam mesmo do lugar, se eu os puxasse?
Fiquei com aquilo na cabeça por um bom tempo, tempo o suficiente para sempre me sentir obrigada a retirá-los e lavá-los, caso contrário eles poderiam gritar um "porca!" nos meus ouvidos.
Quando finalmente me dei conta de que fazia aquilo não por mim, mas pela lembrança de um capricho que não era meu, deixei os imbecis dos bicos acendedores uma eternidade no mesmo lugar. 
Quantas coisas fazemos para obter a aprovação dos outros?
Acredito que muitas.
Nos mantemos magros pela satisfação pessoal e preocupação com o bem estar ou para ficar legal para a foto?
Mantemos um emprego que nos faz feliz ou nos dá status?
Aceitamos as amizades falsas para colecionar amigos ou gostamos mesmo de lidar com gente falsa?
São tantas coisas.
Talvez, tenhamos aprendido que devemos ser assim ou assado e esquecemos do que realmente queremos ser.
Meu pai já era aposentado há anos, mas seguia o ritual de retornar dos finais de semana em Gramado sempre aos Domingos.
Eu questionava o porquê, visto que eles se sujeitavam à quilômetros de engarrafamento quando poderiam viajar tranquilos na segunda, na terça ou nem retornar naquela semana. 
A resposta vinha cheia de reticências e a minha conclusão era de que, por mais incrível que pudesse parecer, eles eram movidos pela culpa. Pela sensação de estarem cometendo algum ato de extrema leviandade e vagabundagem. Pode?
Pode, sim.
Os outros estão muito menos preocupados conosco do que a gente supõe, podem acreditar.
Ok, minha sogra se deteve à minha momentânea falta de capricho, mas depois ela foi para a sua própria casa, esqueceu o famigerado fogão e eu fiquei me contorcendo de vergonha.
E se não fossem os bicos do fogão, poderia ser outra coisa, dita por outra pessoa, em uma circunstância totalmente diferente.
O que serve para mim pode não servir para você.
Fui me lembrar disso tudo hoje, quando deixei os bicos acendedores lá, bezuntadinhos de óleo de cozinha, depois de fritar batatas.
Porque gosto muito de mim e quero que o fogão se exploda!
Não literalmente, por favor.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Amores Longos


Quem tem filhos já crescidos que ainda moram em casa sabe o quanto é difícil administrar egos, posições, opiniões e gênios de vários adultos que ocupam e vivem no mesmo ambiente.
Mesmo sendo sangue do nosso sangue, as crises são inevitáveis.
O que dizer de casamentos longos?
Nenhum dos dois nasceu de nenhum, mamou em algum, foi doutrinado, disciplinado ou alfabetizado com os mesmos princípios ou particularidades que regem cada família.
Então, a concessão, o respeito, a tolerância e a boa vontade devem ser duplicadas para que reine a harmonia e a longevidade da relação.
Com os filhos acontece algo que vai na contramão da coerência: amamos antes de conhecer o caráter, antecipando e projetando o que será ou o que esperamos que venha a ser.
Com maridos e esposas aprendemos com o tempo à admirar, respeitar e amadurecer aquela paixão visceral, infantil e nada perene, até que se prove o contrário.
Porque amor de filho nasce para sempre.
Amor de todo o resto precisa de muitos cuidados.
Casamentos longos requerem o dobro de atenção, visto que despidos da fragilidade da conquista, onde o melhor de si e o do outro é o que é valorizado, a manutenção das segundas, terças, quartas e quintas feiras é tão importante quanto os brindes de sextas e sábados.
Casamentos longos são ótimos, mas de delicada administração.
Quando o oba a oba da paixão embarca nas ondas suaves do amor seguro é quando muitos abandonam o leme para tirar aquela merecida e adorada soneca.
E é quando os barcos afundam no poder desvalorizado das marolas.
Ou é quando as sonecas se tornam eternas e ninguém mais sabe se o que flutua era o que já deveria estar adernado.
Conto no dedos a felicidade dos antigos casais. Infelizmente.
Escuto histórias de ressentimento, vidas paralelas que não se cruzam, solidão à dois, desinteresse.
A felicidade conjugal não é a fórmula criada pela sociedade ou religião.
Não é heterossexual, paternal, maternal ou cheia de bodas de prata, de ouro e de diamantes.
Isso é o que se mostra.
A felicidade à dois, principalmente a longa, depende muito dos dois, por mais óbvio que possa parecer.
Não haverá dinheiro ou saúde que segure o que não quis ser segurado.
E, sim, mesmo na doença ou na dificuldade um amor perdura.
Mas só aquele que foi alimentado para sobreviver à escassez do tempo que resta, mas na fé de que o restante desse tempo também merece ser cuidado.
Ou rebobinado.