quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A ilusão das páginas


Hoje me lembrei de uma daquelas coisas que fazem o coração da gente amolecer de saudade.
O início da temporada de piscinas da Sogipa e a alegria de, depois de horas na fila, finalmente passar no exame médico (nenhuma pereba no corpo, graças a Deus).
Cheguei a sentir a textura emborrachada e quadriculada que servia para escorrer a água dos pés no momento da vitória de transpassar o portão giratório e mergulhar no azul cristalino das alegrias genuínas.
E me lembrei que eu estaria de férias e contando os dias para o Natal, aquele Natal onde só existiam alegrias, pois a preocupação com a vida tinha sido deixada para trás na aprovação do colégio.
Era o momento que eu jogava fora, incendiava, pisoteava, rasgava, triturava a minha agenda Colégio Farroupilha e todas aquelas obrigações de ser datas, números, superações.
Toda a preocupação de ser a versão turbo de um fusquinha que nasceu para rodar sem stress e sem pressa na contramão de uma escola que queria que todos fossem tanques de guerra alemães.
Então me dei conta de que mantenho uma agenda até hoje, não profissional, mas com anotações de consultas médicas, compromissos pessoais, datas que devem ser lembradas e tudo o mais.
E me dei conta, através da minha agenda florida e cheia de borboletas, de que faltam sessenta e nove dias para eu jogar ela em uma gaveta e sair em busca de novas estampas que vão armazenar os rituais da minha existência.
Me apeguei ao controle, aos números que eu representava no colégio e me castigo todos os dias ao me definir em datas.
Me castigo ao anotar pesos, medidas, distâncias, tempo (muitas vezes anoto a distância e o tempo do treino de corrida para fazer comparações com o passado. Menos mal, meu pai contava os passos que dava) e tudo aquilo que só uma pessoa que foi marcada em brasa para nunca esquecer de ser quadradinha é capaz de se permitir.
Porque não anoto os beijos que vou dar ou dei, tampouco os cafés que vou tomar com as minhas amigas, muito menos os dias em que vou querer ir ao cinema, namorar e deitar ao sol com um drinque na mão.
Não vou anotar o creme perfumado que devo comprar, pois vou comprá-lo depois de cheirá-lo e depois de sorrir e fechar os olhos ao sentir ele na minha pele.
Não vou anotar que devo urgentemente mergulhar no mar para lavar a ressaca dos dias.
Esse tipo de coisa eu não anoto.
E tudo que eu anoto geralmente é chato.
Exame pronto, vistoria do carro, contas.
Esses dias fiquei olhando para a minha agenda e senti uma tremenda pena dela por ela ser tão bonitinha e tão chata.
E pensei: fui eu que criei essa monstrinha e a necessidade dela existir.
Pois nem os dias que tenho trabalho são anotados, pois são dias em que vou fazer o que fica anotado na parte do cérebro que não precisa de datas: a parte das coisas gostosas.
E o mais engraçado é que tenho diversas agendas guardadas e de vez em quando dou uma lida nelas.
Quase morro de rir com certas anotações que eu julgava serem necessárias e inadiáveis.
E o mais importante: tudo que foi anotado com muita antecedência deu um jeito de não acontecer.
De uma forma ou outra a minha tentativa pueril de agendar e controlar a minha vida faliu e os acontecimentos fizeram eu rabiscar datas, arrancar páginas, riscar horários, frustar a velha tentativa de controle.
Hoje aprendi a deixar de fazer muitos planos.
Porque o Professor que tenho não é alemão, nem radical, tampouco quadrado feito as fraus que me encaixotaram até eu virar o que sou.
E mesmo quando eu for a feliz proprietária de uma agenda 2016, sei bem que não vou controlar absolutamente nada, por isso fingirei o contrário ao brincar com os números da minha vida.
Na doce e boba ilusão de que a vida é tão estável e estagnada quanto algumas páginas.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Amar não é fácil


"Uma relação tem que servir para tornar a vida dos dois mais fácil".
Essa frase é de autoria do Dr. Dráuzio Varella e abre o texto "Para que serve uma relação".
O Doutor enumera várias ações que conotam uma relação feliz e não uma relação imposta por fatores sociais, econômicos ou demais.
Adorei o texto que vale muito ser lido e me permito acrescentar muitas outras coisas que considero imprescindíveis para que uma relação não aderne, além do sexo sem amarras, do respeito e do companheirismo que são citados no texto.
Estar casado e feliz é um exercício diário e puxado.
Não concordo com o que muitos dizem que morar junto arrefece a paixão e destrói a ilusão, não acredito que o sexo fique sem graça ou quase inexistente e que casas separadas são a garantia da felicidade do casal.
Quem assim pensa, tem preguiça de exercitar a intimidade saudável e não luta para que ela não se transforme em monotonia, frustração, competitividade ou ressentimento.
Tornar uma vida mais fácil é faze-la mais feliz e portanto mais fácil de vivê-la e a felicidade não é e nunca será sinônimo de facilidade, mas de conquista.
Fazer o outro mais feliz do que seria sozinho, fazer com que ele ou ela anseie a volta do trabalho sabendo que será ouvidos e boca, será amparo e consolo para a rigidez do dia a dia.
A admiração mútua é o alicerce que sustenta uma relação feliz.
E admiramos quem tenta nos ler, mesmo quando a leitura não é fácil.
Admiramos quem não se acomoda à união e faz dela uma situação garantida, um fato consumado, como um objeto que compramos e deixamos guardado a espera de uso.
Pessoas felizes procuram no outro aquilo que lhes falta, mas com a consciência desta procura, sabendo exatamente o papel que se quer representar, não por imposição ou fraqueza, mas por opção na construção do perfil dos dois.
Um pode ser mais dependente emocionalmente e o outro financeiramente.
Um pode ser o que mais cede, o outro o que mais exige, não faz mal, desde que a fórmula não tenha sido criada por um apenas, mas que seja uma criação de ambos e que ela tenha sempre na sua composição a alegria e a satisfação de estar junto.
Fórmulas prontas de felicidade não existem para nada.
Cada um tem a sua e ao se relacionar, ambos devem estar dispostos a compreender os ingredientes da felicidade particular daquele que escolheu para dividir a vida e esta disposição deve permanecer para sempre ou o melhor é cada um cuidar de si.
Cultivar o amor não é ver um filme de terror quando se detesta, mas procurar um filme do agrado dos dois já que ambos gostam de cinema.
É conceder as gentilezas que são importantes para aquele que escolhemos para estar ao nosso lado e se vamos querer continuar dividindo a vida que seja para nos fazermos felizes, pois já existe muita infelicidade neste mundo e não é aconselhável plantá-la dentro da nossa casa.
Ela gosta de flores? Dê.
Ele gosta que lhe prepare um pratinho gostoso, feito com carinho? Faça.
Desde que não doa, pois se doer, a concessão amorosa vira mágoa.
No início de todo o relacionamento sempre procuramos prestar atenção àquilo que agrada o outro e o fazemos para nos tornarmos especiais e amados.
São esse detalhes que devemos preservar quando estamos em uma relação estável e se perguntar todos os dias, "o que eu fui e fiz para ele/ela me amar"?
Porque não amamos os defeitos, amamos as qualidades e os defeitos são parte do pacote, portanto temos que tolerar, assim como toleram os nossos.
O sexo, a paixão, o companheirismo e a aventura de viver em par mudam de formato, mas nunca de teor e se nessa mudança o brilho se apagar, então é hora de repensar.
Estar junto jamais deve ser sinônimo de dividir apenas um espaço.
Se não tivermos mais vontade de ser ou fazer aquilo que despertou no outro a vontade de estar conosco, que tenhamos a coragem de dar adeus e sermos felizes sozinhos com todas as outras possibilidades de não ser feliz a dois.
Amar não é apenas tornar a vida do outro mais fácil.
É fazer ela ser muito mais agradável.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Menininha Raiva


Às vezes eu queria dar um pé na bunda do mundo.
Mas daqueles bem dados com direito à lábios e olhos cerrados para a mira ser certa.
Acabar com esses filmes de terror que ele me manda ver quando eu esperava ver somente filmes de amor água com açúcar.
Porque esse mundo é perito em bullying, cutucando a minha paciência, botando elásticos no corredor e morrendo de rir enquanto a minha cara bate no chão frio de linóleo.
Eu queria pegar esta horda de alunos que cabulam aulas, que empurram os colegas e colam nas provas, que batem nos fracos e levantam as saias das meninas e levá-los direto para que o Diretor os avermelhasse as mãos com palmadas.
Não que eu seja uma santa, não senhor, pois também falo mal dos outros alunos e estudo menos do que deveria, mas tento ser o melhor possível.
Faço os meus temas, compareço nas provas e acho (não sei bem ao certo) que ando repetindo anos, caso contrário eu já estaria na faculdade ou, quem sabe, graduada.
Por isso não posso julgar toda essa bagunça, pois sou parte dela.
Até me fantasio nas festas de fim de ano e dou beijinhos no rosto daquele que derrubou de propósito a minha mochila.
Tudo para parecer normal, pois se a metade dos alunos soubesse o que penso me bateriam na hora do recreio até eu perder os meu dentes e o resto da minha consciência.
O Diretor é o único que sabe que não me encaixo, pois nem a minha mãe sabe.
Ele conhece os desenhos que guardo no fundo da classe, aqueles cheios de flores, de animais que sorriem, de mãos dadas, abraços e finais felizes.
E ele me olhou sorrindo quando os descobriu, como se sorri quando um bebê solta gases, para dizer em seguida "trate de aprender as lições, criança, elas são duras, difíceis, eu sei, mas tudo vai fazer sentido quando, um dia, você jogar o seu capelo para cima."
Saí de lá puta da cara.
Sempre essa hora.
Essa formatura que todos ficam falando.
A hora em que finalmente eu vou saber que tudo, mesmo a porcaria toda, valeu a pena.
Cada hora, minuto, ano de estudo, de aula prática, essa coisa toda que eu dividi com quem segurou a minha cabeça quando vomitei todas as doses extras.
Esses que vou olhar nos olhos quando essa coisa capelo estiver no ar.
E vou querer dizer, eu acho.
"Foi você, vocês que me fizeram aguentar até o final. Além do Diretor, é claro, que foi tolerante demais ao me  engolir sem me expulsar, mesmo quando eu quis dar um pé nessa bunda de mundo e ele veio sorrindo como o dono que vê o seu cãozinho fazer xixi no tapete, mas sabe que o tapete é o de menos.
Pois não importa a bagunça.
Nem a minha revolta com os colegas.
Mas o que serei depois da formatura.

E tudo o que aprendi até aqui.
Sem mais.
Obrigada."

domingo, 11 de outubro de 2015

Assumi os meu cachos.


Ela sofria há um bom tempo de um tipo de maus tratos tão eficiente quanto um tapa no rosto, mas menos perceptível e tão dolorido quanto.
Ou mais.
Era a anulação afiada e discreta de tudo o que ela era.
Depois de uma separação conturbada foi nele que ela encontrou um ancoradouro para aportar e descansar das ondas calmas e solitárias de estar navegando sozinha.
Mas aos poucos perdia em si coisas que não sabia definir, apenas buracos incômodos se formavam e ela os preenchia com os desejos dele.
Se tornou uma imagem projetada, com falhas que eram criadas todos os dias, compensando as que ela pensava terem sido restauradas.
E as exigências não vinham na forma de acusação, vinham na forma de elogios à tudo que as outras possuíam e que não fazia parte dela.
Então, ela quis ter tudo das outras e ser tudo na intenção de aplacar a fome insaciável de não se pertencer.
Se vestia para agradá-lo.
Passou a pintar de vermelho as unhas e maquiar o rosto.
Começou a fazer dieta.
Tomava banhos de sol e alisou os cabelos.
Falava pouco com as amigas, deixou o gato na casa da mãe, esfolou os joelhos nos ladrilhos da cozinha enquanto polia o chão.
Começou a frequentar a academia e consumia litros de suplementos para definir os músculos.
Assistia filmes de tiroteio e documentários sobre esportes radicais.
Parou de tocar violão e sentia vergonha de não comer carne.
Até o dia em que ficou doente.
Doente por dentro.
E descobriu que estava permitindo que essa doença a consumisse na ilusão de que o amor era algo que não lhe pertencia.
E estando com quem a maltratasse, teria o aval para não merecer ser amada jamais.
Foi com terror e surpresa que ele encontrou uma linda mulher crespa, de mãos livres de esmalte, aconchegada no sofá com seu gato cinza aninhado nas pernas.
Foi sem se levantar das mantas bordadas de flores que ela ouviu ele recolher suas coisas, embalar a própria doença e colocá-la na mala.
E as pessoas passaram a dizer que nunca a tinham visto tão bonita e ela apenas respondia "assumi os meus cachos".
E em uma noite, sozinha, assistindo algo romântico na TV, tragando o cigarro que se consumia e sorvendo cada gole da taça de vinho, descobriu que estava pronta para amar.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Precisamos Sorrir


Há três anos eu estava fazendo uma viagem de sonhos.
Primeiro, por estar com toda a família, coisa rara hoje em dia, pois filhos crescidos pousam em ninhos diversos.
Segundo, por estar em um dos lugares de que mais gosto, onde moram o sol, a praia, a civilidade, os cenários paradisíacos e as várias opções de lazer. 
Estando tão perto, não poderíamos deixar de visitar a Disney World.
Pois lá a gente perde a memória de tudo que é ruim.
De cem bocas, noventa e oito estão sorrindo e as outras duas, comendo.
Em uma das suas diversas lojas, conheci um enfeite para antena de carro do qual me apaixonei. 
Cabeças de Mickey e outros diversos personagens que servem apara arrancar a seriedade de um monte de lata, através de um pequeno orifício que se encaixa.
Não comprei, pois minhas filhas me convenceram de que eu iria aproveitar pouco a minha diversão, pois as mãos do nosso país são rápidas em retirar a alegria alheia.
Foi um dos raros momentos que deixei de sorrir.
E hoje me arrependo de não ter comprado, mesmo assim.
Três anos se passaram.
E estou tratando da minha vida,  tentando evitar ao máximo os pensamentos pessimistas oriundos de um cenário horroroso de roubos, mortes, assaltos, injustiças, atrocidades, corrupção, crise econômica.
Estou tentando atravessar a rua em um semáforo aberto para mim, onde os carros não param.
Estou com o dinheiro recebido do trabalho escondido debaixo do sutiã e com medo de ter o dedo arrancado por causa da aliança de casamento.
Estou chateada, pois acabei de ser dispensada de um trabalho que eu amo, pois a crise me considera mão de obra supérflua.
E vejo o personagem do desenho Frozen balançar intrépido na antena de um carro que vai entrar em uma garagem.
Impossível não se emocionar.
Me enchi de um alegria tão genuína quanto infantil, aquela alegria de criança que não tem previsões ruins de futuro e que só vê coisas boas no ato de crescer, pois sabe que vai poder aprender a andar de bicicleta, vai poder entrar no mar sozinha, aprender a jogar futebol, um dia dirigir, namorar, ir no cinema e nas festas.
Ela, criança que é vendada para a tristeza futura assim como os animais que não sabem que um dia irão morrer.
O dono do carro tem a mesma sede imensa que sinto de poder brincar com a dureza da realidade para poder respirar sem que lhe doam as entranhas.
Porque se nos enrijecermos demais, acabamos quebrando.
Se olharmos só para os cinco mil bois afogados no transporte de navio, o desmatamento, o aquecimento, se ouvirmos só as asneiras da energúmena que preside o nosso país, se focarmos no ruim e alimentar esse ruim com a energia da nossa raiva, vamos morrer atualizados e secos. 
Vamos adoecer de alma e de corpo e nada vamos poder fazer exceto estar por dentro de tudo e ocos por dentro.
Se sofro com tudo isso? Muito.
Quando o cadeado que aperta o meu peito ameaça explodir o meu corpo, trato de achar enfeites em antenas de carro.
E faço delas o meu remédio para dor.
Faço delas a minha esperança ao ver que ainda se enfeitam os carros com a ilusão bonita de uma criança que repele um futuro escuro por mais provável que ele possa ser.
Caso contrário, ela se impediria de crescer.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Tudo vai ficar bem.


Por que deixar a raiva acompanhar o nascimento do sol?
Depois dela ter estado em companhia da lua?
Por que?
Mesmo sabendo que toda a cura se dá pelo amor?
Essas nossas mãos também impuras, essas que enrijecem o dedo em acusação para nós justa.
Nesse mundo de restauração.
Nesse universo de amor imenso que não combina com facas, nem farpas, nem vingança de dentes que perseguem e matam.
Como esperarmos que curem as nossas feridas se as arranhamos e as sangramos na repetição de tentar saciar uma sede ingrata?
Somos frases de efeito e vítimas, mesmo sendo algozes de nossas vidas.
Na tentativa de sermos únicos mesmo sendo feitos de todos.
E enquanto tivermos razão, vamos ser cegos para a luz.
Aquela que ilumina a costa íngreme que se escala.
Aquela que desnuda o sofrimento travestido de mágoa.
Aquela que nos faz sermos nada.
Nenhuma palavra imposta.
Nenhum julgamento transfigurado de justiça.
Nem ódio na instauração da paz.
Por que deixar a raiva acompanhar o nascimento do sol?
Não somos donos das florestas, nem das marés, nem de nada que caminha e habita a terra.
Exceto donos do que queremos para nós.
E queremos tudo à que viemos.
Mesmo esse tudo tendo sido transfigurado pela dor.
Por mais suave ou dura que ela seja.
Mas não forte o suficiente para perdermos a batalha pelo bom.
Ele que sempre nasce com o sol.
Tendo estado em companhia da lua.
Por mais que a maldade tente nos fazer esquecer essa luta.