quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Beija Flor


Ele não sabia se era pássaro, borboleta ou flor.
Asinhas que eram fumaça em céu infinito.
Biquinho delicado se fingindo de caule, fincado em corpo de flor azulada, verde e brilhante.
Colorido que existia leve, irrompia na manhã de cada dia, mas não cantava.
Por não saber o que era, o Beija Flor chorou.
Se sentiu diminuto em um mundo de envergaduras imensas. 
Se sentiu imenso na delicadeza das flores e borboletas.
E em cada beijo foi flor, em todas as cores e suavidade foi borboleta e em todos os voos foi passarinho.
E na certeza de não ser somente um, foi feliz podendo ser tudo.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Chave


Certa vez, em um curso, conheci uma menina deficiente, daquelas que pouco desenvolvem o corpo, tem dificuldades na fala e os membros são retorcidos e pouco desenvolvidos.
Era a palestrante do dia e veio nos falar sobre os benefícios dos animais na sua terapia.
A moça de vinte anos estava de cabelos arrumados, batom, unhas feitas e usava a camiseta do grêmio em homenagem ao time do coração.
E era um imenso sorriso.
Duas palavras e uma gargalhada, mais duas e mais um monte de dentes à mostra.
Cheguei em casa carregando o impacto daquela força que cavou a felicidade e a possuiu com unhas e dentes, pois ela poderia escapar para sempre no primeiro minuto de consciência do que representava viver daquele modo.
Então, lembrei da mãe sentadinha no fundo da sala, enchendo os olhos de lágrimas a cada aplauso nosso.
Então, percebi que mesmo a menina tendo perdido tanto, ela possuía uma joia rara.
Ela tinha aprendido a ter a capacidade de se permitir.
Me enchem de desgosto aqueles vídeos de auto ajuda, daquele tipo onde um rapaz, ora em cima de montanhas, ora na beira do mar, ordena que saiamos da zona de conforto e nos tornemos um herói corajoso que, de vontade e espada em punho, rasga a rotina e desbrava as grandes aventuras e prazeres da vida.
Nem a música inspiradora e em notas crescentes ajuda.
E não adiantam palestras de arrependimentos em doentes terminais ou relatos de como idosos felizes chegaram, no decorrer de uma vida, à esse grau de satisfação se uma simples chave para todas as maravilhas do mundo não estiver em nossas mãos.
A capacidade. Que nasce junto com os primeiros passos e é um reconhecimento de que se é merecedor, sem culpas, de todas as maravilhas da existência, mesmo quando essa existência resume um pouco o número de alegrias.
Uma pessoa com aversão às alturas jamais vai pular de pára quedas mesmo que digam que é preciso, é bacana, é libertador.
Não é dizendo o que deve ser feito para sermos felizes que seremos e o resgate desta capacidade pode ser como um novo parto de si mesmo e um recomeço no aprendizado de se permitir existir, se permitir acreditar em si, nos outros e no prazer que é para todos.
É aprender a não ter medo de pular.
É o amor, e somente ele, que possui essa chave.
O amor do outro que desperta o amor próprio e o amor ao outro que faz esse próprio amor abrir as diversas portas, destravar as trancas, fabricar sorrisos e luz nos cantos mais escuros do mundo.
Não é preciso me ensinar à ser feliz.
Me ame.
Então poderei finalmente ser capaz de procurar dentro de mim aquela chave que ficou perdida e esquecida.
E estarei pronta para usar.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Bebê Mendigo


Ele é velho.
E negro, magro, manco, com a barba espessa e as roupas rasgadas.
Pede esmolas em uma sinaleira demorada e alcança o chapéu para evitar que quem o ajude tenha contato com as suas mãos.
Ele sabe que as suas mãos são evitadas.
Assim como os seus olhos.
Assim como ele todo.
Então, mudo, estende o chapéu.
Eu estendo a minha mão e alcanço algumas moedas, evitando não as mãos, mas o todo e os olhos.
Meu olhar é sempre rápido, pois a miséria e a dor do mundo me cai como pedra no estômago e fico dias sem poder digerir as outras coisas que me caem nos braços.
Estendo a minha mão com dinheiro (e quando posso com outros recursos) como a única forma que possuo de minimizar o sofrimento de quem nasceu de uma mãe, assim como eu.
Sou testemunha de um bebê que virou mendigo e não questiono como será usada a minha ajuda para esse adulto que perdeu tudo.
Então, dou. 
E neste dia dei novamente e ouvi pela primeira vez um muito obrigada, ao invés de um acenar de cabeça.
E esse muito obrigada, com uma voz que eu não esperava, me fez olhar de verdade.
Olhar nos olhos.
Junto com o todo que eu evitava.
Ele é negro, magro, manco, com a barba espessa e as roupas rasgadas.
Mas não é um velho.
É um jovem que perdeu tudo e que se veste da velhice na intenção de não receber o que poderia receber da vida, caso não tivesse nascido um bebê mendigo.
E foi neste dia que eu envelheci muitos anos.
Mais tarde eu recuperaria a minha própria idade.
Mais tarde ele chegaria mais perto do fim.
Eu, ainda tendo sonhos no mundo que o evita.
Ele, no estender de uma mão que carrega um roto chapéu.
Pois na selva em que vivem os homens existem bebês que já nascem perto do fim.
Mesmo quando fingimos que não.

Eu dou.


Quantos beijos você precisa para restaurar o seu calor?
Quantos abraços posso lhe dar para sarar a sua alma?
Me diga.
Que dou.
Quando tantos não se envergonham do ódio.
Por que nos envergonharemos do amor?

terça-feira, 12 de julho de 2016

Tourada


Ele brincava muito.
Com os cabelos dela, com a curva suave das suas coxas, com o nariz franzido de brabeza.
Brincava com as alegrias e a fazia se sentir criança cuidada.
No inicio.
Passou a brincar com certos medos e inseguranças que ela carregava pesados no peito.
Com as dores dela.

Com o cansaço que julgava bobo.
Brincava falando de outras mulheres que o bajulavam, de outras mulheres que tinham um pouco mais do que ela.
De conquistas que não eram dela, de passos errados ou não dados.
E as brincadeiras ficaram engraçadas somente para ele como uma tourada é divertida para o touro.
E no perfurar de cada espada, no sorriso e na gargalhada sádica, ela sangrava mais um pouco.
Quando ela pensava estar acostumada com as feridas, correu.
Quando ele pensava que os ferimentos eram parte da diversão de ambos, se surpreendeu.
E na arena vazia, ferido, a culpou.


sábado, 18 de junho de 2016

Aqui embaixo


Lá do alto.
Ele pousado no que mais próximo do céu existe.
O mais próximo do céu que algo fincado na terra e feito dela alcança.
Lá do alto no longilíneo cipreste, ele observa.
Essa vida rasteira que aqui acontece.
Com o sol iluminando todos os tons de penas que ele carrega.
Com a cabeça que gira e os olhos astutos, recortados e um pouco severos.
Ele observa.
Os cães que latem, os carros que correm, as armas que disparam nas pessoas que caem.
Os gritos de raiva, os choros de perdas, os bebês com fome.
As plantas cortadas, os afetos interrompidos, as mágoas guardadas.
As máquinas.
Em um bater de asas.
Os amores completos, as mãos estendidas, os joelhos dobrados em prece.
Lá do alto.
Ele vê.

E ouve.
Todo esse barulho inútil.
Todo esse barulho que acontece abaixo do céu azul, cinza, chuvoso, nublado.
Ele pousado.
Testemunha dos nossos infinitos passos sem trégua.
Ele voa.
E no abrir de asas sobrevoa as felicidades em forma de casas, de chaminés fumegantes, de jardins coloridos, de gatos dormindo nos telhados ensolarados, de piscinas com crianças em sorrisos e boias coloridas.
Sobrevoa as dores dos acidentes de trânsito, a vida difícil dos gambás e dos camundongos.
E fecha as asas nas copas densas das árvores enquanto os pés sem sapatos se aconchegam nos jornais e congelam.
Lá do alto.
Onde só existe o barulho do vento e os gritos de vida.
Dele e de outros pássaros.
Onde ele encontra conforto ao retornar do mergulho arriscado.
De tudo que acontece aqui embaixo.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Amada


Mais do que um espelho que lhe mostre o capricho do traço perfeito no côncavo delicado dos olhos.
Mais do que um espelho que reflita toda a poesia escondida no querer ficar bonita, nos lábios pintados de rosa, carmim ou dourado.
Uma mulher precisa de olhos que a estudem e leiam.
E no calor desses olhos que se semicerram em um sorriso suave, ela precisa ouvir em silêncio "eu sei, mulher, que essa beleza inventada no rosto é a sua fome ainda forte de ter a vida para sorver."
É a sua vontade de querer ser amada.
Pois uma mulher precisa de mãos que a toquem - não distraídas - como ela tocou tantos filhos reais ou inventados.
Que acariciem os seus cabelos e percebam o cheiro novo do shampoo recém comprado.
Que acariciem a sua pele e percebam que ela ainda se perfuma como flor, ainda brota, olha para sol e se estica ao céu.
Ela pode se desfazer em mil pedaços se souber que os seus amores estarão inteiros.
Que esses amores terão aprendido com ela a serem os donos do mesmo colo e amparo que, um dia, essa mulher precisará que sejam também dela.
Pois ela é montanha, mas também é água.
Mais do que palavras soltas no ar de um impulso qualquer.
Mais do que promessas de sonhos futuros.
É no agora, no deitar em lençóis usados que ela precisa da surpresa de um abraço.
Pois, um dia, quando ela estiver cansada e a finitude da vida estiver conversando com ela, ela vai lembrar.
Mesmo sem batom nos lábios, mesmo sem forças para se esticar ao céu.
Toda a beleza vai morar no sorriso, no colorido intenso e lindo.
De ter se amado.
E ter sido realmente amada.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Quando nada fizer sentido.


Quando nada fizer sentido.
Procure algum lugar onde o mar, o rio, o lago possa ser visto de cima.
Abra a janela dessa casa na colina, abra os olhos na beira do penhasco, finque os pés na inclinação do morro, tenha o vento segurando as cordas e as cordas segurando o seu corpo.
Acima da imensidão da água.
Quando nada fizer sentido.
Seja a nuvem que lânguida, suave e lenta suspira sua sombra nas ondas ou marolas e deixa tatuado nas gotas o deslizar tranquilo de uma viagem que nunca acaba.
Seja a nuvem que aceita virar água para em seguida olhá-la de cima.
Quando nada fizer sentido.
Seja o brilho do sol que ofusca e tinge de dourado todo azul, verde, marrom ou cinza.
More nas asas que sobrevoam e nos barcos que singram.
Namore o mistério do horizonte.
Perscrute os movimentos que não ousam espiar o ar.
Respire.
É preciso sentir para poder respirar.


terça-feira, 31 de maio de 2016

HOMENS (inspirado em textos reais)


Meu marido tem um amigo no Facebook que fiz questão de solicitar amizade depois de ler um texto que ele escreveu chamado MULHERES.
Ele, o marido, veio me mostrar o texto rindo, dizendo que era a minha cara.
Fui conferir.
Era.
Além de eu rir do começo ao fim, me vi ali, desnuda, estampada em palavras.
Eu, a rainha do emburramento quando braba, pois a brabeza me tranca na goela e provoca um silêncio súbito e espesso.
Mas haja visto que tenho nessa brabeza certos motivos, vou chupar (jargão publicitário, não confundam) a ideia e fazer a minha versão feminina.
Eis.

HOMENS
É ruim tu receber um Bebê Barbudo de mais de oitenta quilos chegando em casa de beiço virado.
Tu que limpou pátio, tratou dos bichos, varreu a casa, cozinhou o que tinha, passou, estendeu, limpou e ainda trabalhou fora naquele trabalho mais trabalhoso do que rentável.
A porta abre de sopetão, um aviso prévio do mau humor, ressentimentos com o mundo e vitimização e tu já sabe que o passado vai cutucar o teu ombro e o leite materno vai descer rapidinho, mas não para alimentar teus filhotes que já estão quase fora de casa, mas pra servir de consolo para um bobalhão que não sabe chorar sozinho, coisa que tu faz desde que nasceu, diga-se de passagem.
A taça de vinho para no meio do caminho e o gole reconfortante é impedido pela sensação de que o filho mais velho, mais exigente e mais carente chegou em casa de pá virada.
Aí tu começa a te dar conta que mesmo com os filhos casados, os originais, esse daí vai mamar pra sempre no teu seio já esgotado e a tua cabecinha começa a pensar em uma forma de desviar do assunto, aquele de sempre com muitos nomes que tu já ouviu e não sabe de onde, com muitos políticos corruptos, contas infinitas, transito dos infernos e muito mais.
Tu não arrisca uma conversa e enfia a cabeça dentro do forno que está assando o amendoim, assobiando o tema do filme Uma Linda Mulher com a esperança que o Bebê Barbudo desista de mamar, pois ele não pretende estragar o teu belo humor.
Vai pensando, parideira.
Ele já vem com a conta do Hipercard (aquele que ninguém aceita por ser uma tremenda porcaria) na mão.
"Tu lembra onde tu gastou isso?"
Tu tira, relutante, a cabeça do forno a tempo de ver ele apontando para uma conta de cento e doze reais divididos em oito parcelas fixas de quatorze.
"Só pode ser a Panvel, com esse valor."
Tu rebate.
A boca pequena e virada em um sorriso contrário abre o suficiente pra dizer a célebre frase:
"Mas como tu gasta em farmácia!"
E tu já nem lembra se é ou não a velha Panvel porque ele já sentou na posição de mamar.
E vem aquele monte de falatório que ele só reserva para ti, parideira, o mesmo que é esquecido com os amigos (e sabe-se com quem mais), onde o sorriso é real e não invertido.
E tu tenta lembrar, já no terceiro gole de vinho, daquele bom humor só reservado pra ti, lá quando tu ainda tinha umas bochechas mais saudáveis.
Então, depois tu deita quentinha na cama e vai tentar sonhar com o Richard Gere, com um Martíni sendo bebericado na beira de alguma praia do Caribe, onde não existe louça pra lavar, onde tem tempo livre pra dormir à vontade.
É quando tu sente a mãozinha gelada do Bebê Barbudo tocando na tua cintura e ele já não é mais tão bebê nesse momento, mas um bobão bastante esquecido.
E tu também.

sábado, 14 de maio de 2016

O Buxo de Plástico


Ele mora em uma bicicletinha de ferro pintada de branco, em um recuo da fachada da casa, onde se pode espiar pelos vidros a minha sala.
Quando o vi aninhado, verde e redondo, no Vaso Bicicleta esperando por quem o comprasse, me apaixonei perdidamente.
O enfeite cabia exatamente no vazio da janela e ao molhar a  grama os meus olhos enamorados pousavam sempre na delicadeza e perfeição do meu pequeno buxo de plástico.
Mas a paixão cedeu ao costume e ele virou a rotina das minhas regas quase diárias.
Vez ou outra ao entrar apressada na casa voltava os meus olhos à ele, mas eu havia deixado de varrer com um pincel as suas pequenas folhas para que elas continuassem verdes e lustrosas.
Eu havia esquecido de girar o guidão e reposicionar a imitação de plantinha podada, de assoprar as sujeirinhas ocasionais, de empurrá-la para a proteção da parede em dias de temporais.
Eu ainda o amava e amo, mas havia me acostumado a receber sua diminuta beleza sem perceber o quão frágil ela era, muito mais do que o ferro da bicicleta que a abrigava.
Eu esqueci de dar.
O recebia com gratidão por fazer mais poéticos os meus dias, mas certa da perenidade de sua beleza, certa da oferta diária do seu conforto, deixei de cuidar.
Há pouco tempo olhei para ele como o olhei quando ele ainda não me pertencia.
Sorri com a lembrança da alegria que ele sempre me deu e fui, depois de muito tempo, ajeitá-lo nos braços da bicicletinha de ferro.
Então, nas minhas mãos ele quebrou.
Dezenas de folhas de plástico se desfizeram ao meu toque, secas, sujas e duras, espalhando um tapete verde nos tijolos da janela.
Não era para sempre o seu viço e a sua oferta de beleza, pequenino?
Acreditei demais na sua força, na sua garantia da minha felicidade e esqueci de varrer com carinho o pó que lhe cobria?
Fui egoísta ao querer sempre receber a sua singela oferta de alegria sem dar nada em troca?
Ele mora em uma bicicletinha de ferro pintada de branco, em um recuo da fachada da casa, onde se pode espiar pelos vidros a minha sala.
Mas jamais será o mesmo.
E o vendo, desfolhado e feio, lembrarei para sempre que todos os nossos afetos devem ser cuidados, pois existem mortes muito mais tristes do que a de uma pequena, bela e redonda plantinha de plástico.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Bichos livres

O coração começa a acordar e vibra.
Os passos.
Eu e você entramos no videoclipe das nossas vidas embalados pelo som que nos serve de trilha.
Eu e você expandindo as artérias, fabricando prazer no ritmo das passadas, na pele que aquece, no vento e sol que assopram êxtase no nosso rosto.
Tudo passa rápido, mesmo as fagulhas de pensamento.
Como a visão de uma janela de trem em movimento.
Nossas dores escorrem em gotas pelo corpo e vão evaporando salgadas e já sem peso.
Eu e você.
Que escolhemos correr.
Com os cenários embalados em melodias, com a chuva fina, o sol de verão e a lâmina seca do vento gelado.
Não temos tempo para os problemas que ficam pisoteados no esforço de uma lomba qualquer que nunca é tão íngreme para o nosso fôlego.
Declaramos o nosso amor ao próprio corpo na intensidade de fazê-lo sentir-se vivo.
E quente.
Eu e você que temos esse segredo de felicidade guardado nos nossos fones de ouvido, nos tênis cansados, nas pernas fortes, no varal repleto de roupas de esporte.
Somos bichos livres.
Eu e você que corremos.
E temos esse segredo.
De sermos selvagens.
No suor, no pisar, no desviar, no olhar e atravessar.
E ao recuperarmos a respiração tranquila, ao voltarmos às cadeiras e rotinas, somos outros.
Bichos livres que se submetem às amarras.
Até escancarar a boca e expandir as narinas na próxima trilha.
Na próxima estrada.

sábado, 7 de maio de 2016

Mãe


Sou mãe de cabelos e de pelos.
De barbas crescidas e de penugens douradas em moleiras recém nascidas.
Sou mãe de genros, maridos e sogras.
De flores que pedem água, de terras que pedem para serem remexidas e adubadas.
Sou mãe de garfos e facas que se desorganizam e se sujam na desobediência de casa cheia, na alegria de refeições quentes servidas.
Sou mãe de lençóis cheirosos, das próprias palavras de que tudo vai ficar bem nos dias turbulentos e chuvosos.
Carrego no coração e no colo as preocupações com o trabalho, com as contas, as ruas, os animais, as crianças, os sem casa.
Uso meu corpo de escudo e meus dentes de aviso à tudo que considero ameaça aos meus filhos. 
E tenho tantos, mesmo que eu nunca os tenha carregado nas minhas entranhas, pois os cultivei para sempre nas minhas veias, no meu sangue e na minha alma.
Sou mãe dos choros e das alegrias, das conquistas e das derrotas.
Me alimento da felicidade dos meus amores e morro feita em pedaços nas tristezas que os corroem.
E não, não sou mãe porque gerei filhos.
Serei mãe até ter sido a mãe que meus irmãos precisaram e a mãe dos meus pais que estarão velhos.
Então, mesmo não sendo mais os olhos que guardam, já não sendo mais mãe e sendo um futuro outro qualquer.
Terei a grandiosidade de ter sido mulher.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Lacuna


Somos feitos de espaços.
Alguns preenchidos, outros transbordando.
Muitos vazios.
Somos seres incompletos pela carência e fartos pela abundância.
Pelo excesso e pela falta.
Por recheios falhos, poucos ou nulos.
Abastecidos pela fé de que existe algo mais do que lacunas.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Água


Me perdoe se eu chorar amanhã.
Mesmo que hoje eu tenha me despedido do sol com os olhos satisfeitos em sorrisos.
Me perdoe, pois não será nada grave, nada grande, nada digno.
Serão lágrimas ao acaso, em meio a essa tempestade de contratempos, feito chuva fina e bruma densa que molha um pouco, mas não encharca.
Que vão brevemente banhar a minha alma, dissipar algumas nuvens densas, porém pouco pesadas, e vão cair suaves ou violentas apenas na intenção de ser água.
Como chuva que escorre, morre e nasce.
Me perdoe se insisto em me fazer poça quando existem tantos rios, lagos e mares no mundo.
Não posso justificar nada, não preciso de barragens que segurem a força das minhas torrentes.
Essa água que sempre foi minha quer apenas sair livre, desabitar o meu corpo e se tornar a coragem que muitas vezes não tive.
Essa coragem de ser lágrima sem motivo, dança sem música, viagem sem destino, conserto e salvação de tudo.
É apenas e somente isso.
Sem remorso em me fazer oceano no cerrar dos olhos, no abrir do lábios, no salgar do rosto, das veias e de certos sonhos.
Esse oceano que sou, onde afundaram barcos, onde foram resgatados náufragos, se formaram temporais em marolas e descanso em ondas furiosas.
Me perdoe se eu chorar amanhã.
E molhar esse campo que sou.
Onde nasce, floresce, morre e ressurge tanta vida.
Só te peço.
Meu caule pode sucumbir aos caprichos do meu clima.
Mas não permita que eu, mergulhada nas insanidades do mundo, afogue as sementes sedentas de vida.
Não permita que mesmo eu sendo feita de toda essa água.
Eu arraste e derrube pontes.
E nela me afogue.

segunda-feira, 28 de março de 2016

A imprevisibilidade da vida


Eu tenho um psiquiatra que vejo duas vezes ao mês.
Já fazem uns dois anos, mais ou menos, e todas as vezes que vou lá, de uma forma ou de outra, ele me faz pensar em planos para o futuro.
Ou melhor, me faz enxergar o quão desleixada sou em não planejar os dias subsequentes da minha vida.
Sempre saio de lá com uma pulga atrás da orelha e as outras pulgas ficam por lá, mortinhas, prontas para serem varridas.
Essa que fica perto do meu ouvido, se mexendo e sussurrando é justamente a que me faz ver que nunca fui de fazer planos.
Até planejo as próximas horas, mas muito pouco os próximos dias e inexistem os planos dedicados aos anos.
Simplesmente aprendi que as coisas mudam a todo instante e a imprevisibilidade do existir torna inviáveis as metas a longo prazo. 
Claro, posso fazer uma faculdade com a intenção de me tornar uma profissional em determinada área, posso começar um trabalho, comprar passagens aéreas antecipando uma viagem e muitas outras coisas, mas mesmo essas possibilidades podem, com o passar do tempo, trazer variáveis que mudarão o percurso da história.
Só o diploma, só a efetivação no trabalho e só os pés pisando o carpete do avião serão a garantia de planos concretizados.
Tudo muda drasticamente a todo instante e as pequenas mudanças podem nos passar imperceptíveis como as marolas, assim como as grandes mudanças são como ondas gigantes.
Na última consulta mostrei na prática a minha teoria.
"Não adianta, tudo pode mudar, uma solução pode virar problema, um problema pode virar solução." - disse eu, sentada na poltrona de frente para ele.
"Me dê um exemplo."- disse ele, olhos semi cerrados na expectativa de alguma bobagem.
"Pois bem. Eu peguei um filhote de cachorro que estava morrendo na rua. Tenho seis, como você bem sabe, mas eu não poderia deixá-lo lá, como você bem sabe. Ele virou um pepino enorme, meus cães brigando, minha dúvida se ele sobreviveria, meu coração apertado por amparar mais um, gastos, enfim, uma dor de cabeça peluda, carente, fragilizada e linda. Tive semanas de insônia, crises de taquicardia, preocupações e trabalho sem fim. Eu ficava de joelhos, rezando e pedindo que alguma alma caridosa o adotasse ou, no mínimo, me ajudasse de qualquer forma (e tiveram várias formas e uma única ajuda). Ofereci o pobre bebê até enquanto corria na rua, na internet, para os amigos, vizinhos, o Papa. Eu queria alguém de confiança. Nada. O tempo passou, assim com a fase difícil e ele se tornou um afeto maravilhoso para toda a família. Então, surgiu um belo adotante e prometi entregá-lo depois de castrado, porém a castração teria que esperar a maturidade do cãozinho que já tinha nome. O adotante ansioso, ligava todos os dias. Nós, ansiosos já não sabíamos mais se queríamos nos livrar do pepino que virou Yoda. Então, novamente o tempo passou (é incrível esse tempo) e o adotante virou meu pepino, pois eu teria que voltar atrás com a minha palavra. Minhas orações se voltaram para que o bom rapaz desistisse do bom cachorro. A minha solução se tornou o meu problema e o meu problema se fez membro da minha grande família."
"Concordo plenamente." - disse ele.
E aquela pulga, aquela que sugava os meus dias, atrás da minha orelha, caiu morta no chão do consultório.
Penso que será varrida como todas as outras.
Até que a imprevisibilidade da vida me traga novos problemas que virarão solução e novas soluções que virarão problemas.
Até que, cheia de rugas nos rosto, eu me mate de rir de todas as vezes que nós, simples mortais, tentamos passar a perna no que está escrito para nós.

terça-feira, 15 de março de 2016

Ansiedade


O despertar vem forçado pelos latidos nervosos, repetitivos e altos dos cães do vizinho.
Apesar de já habitar a minha mente o reverberar dos pneus dos carros que descem a rua muito mais velozes do que seria permitido, na pressa neurótica de fazer quase tudo que não é necessário.
Meu coração já havia iniciado aos poucos os solavancos já familiares bem antes de eu abrir os olhos, mas agora retumba furioso com batidas tão desconfortáveis quanto inúteis.
Eu não preciso dessa velocidade toda do meu sangue, assim como os carros não precisam voar nos paralelepípedos e ameaçar os gatos.
Tento acalmar o meu bombear desobediente lembrando de um quarto na beira do mar.
Onde dormia uma pessoa diferente da que me tornei, nem melhor, nem pior, apenas uma que tinha um quadro com coqueiros fincados nas areias brancas bem em frente à sua cama.
Lembrando do som suave das ondas no início de uma manhã que abrigaria gritinhos de crianças e buzinas de carrinhos de picolé.
E com o mar jorrando o seu sossego nos meus ouvidos no início de uma noite de sonhos, consigo tum...tum...conversar com esse meu coração sobre a insensatez em querer bancar Deus.
Na viagem à ingenuidade daquela pessoa diferente, porém igual, prescruto cada vestígio dela em mim para tentar arrancar a coragem de ser dona do seu próprio pulsar.
Para ordenar os pensamentos como criança bronzeada que não espera muito mais do que os pés enterrados nas areias da praia.
Não espera muito mais do que um Chicabom derretendo na boca, mesmo sabendo que o chocolate gelado e cremoso irá desaparecer tão rápido quanto os dias de sal nos cabelos.
Não tenho ouvido o mar há mais tempo do que eu gostaria.
E ele sempre fez mais bem aos meus olhos e ouvidos do que à minha pele.
Muda de tom, de humor, de tamanho.
É dele a força para se lançar à terra, mas não são dele as chuvas e os temporais, nem os dias ensolarados que o fazem brilhar.
Ele apenas existe...tum...tum...e jorra.
E só Deus pode fazer ele parar.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Muito prazer, sou um texto inacabado.

O meu jardineiro é meu amigo antes de ser meu jardineiro.
Pessoa rara em honestidade, caráter, bondade.
O conheço há quatorze anos, quando jardinando a casa que seria minha, abriu as portas para mostrar cada cômodo desocupado dos vários que guardariam os meus passos, o meu corpo, as minhas alegrias, as minhas lágrimas, os meus amores, a minha vida.
Na última visita rompeu em lágrimas e me surpreendeu.
Olhou nos meu olhos e disse que tinha vivenciado a coisa mais triste da sua vida. Vida dura eu bem sei, com começo árduo tendo apenas a roupa do corpo e a esperança guardada no bolso.
Sempre sorridente e alegre, pela primeira vez vi o seu rosto se contorcer em tristeza e os lábios virarem para baixo ao dizer que tinha perdido o seu melhor amigo, que tinha visto ele bater as asas em espasmos e deixar para sempre o corpinho verde de papagaio.
Era o filho que nunca teve, era a dor simples e banal para tantos, mas profunda e dilacerante para ele.
A dor dele, a minha, a nossa que será desigual sempre, mas jamais menos significante.
Um bicho, um amor, uma conquista, um degrau que some e fica para trás depois de nos deixar pasmos na relutância em aceitar que temos que enfrentar todos os dias a mutilação pequena ou grande da nossa alma. A regeneração grande ou pequena da nossa alma.
E que vamos ter que caminhar com pedaços a menos e rugas a mais. Com pedaços a mais e insônias a menos. Com uma forma diferente de existir depois das perdas, uma forma lapidada na consciência da brevidade dos momentos felizes ou tristes e da necessidade de construir lembranças, saudades, pontes, aprendizado.
Vestimos o coração com as pessoas, os afetos, o conforto, as alegrias que nos fizeram e nos fazem Brunas, Andréas, Fábios, Renatas, Carlos, mas o tempo de se reinventar sempre chega.
E ele pode demorar dois ou trinta anos, mas vamos ter que lidar com o fato de que tudo muda a todo o instante e nas dores e regojizos vamos colocando letras no nosso pequeno alfabeto, vamos colocando significados e sentido no que somos e, no final das contas, vamos saber que seremos bem mais do que nossos simples nomes.
Como um carro com um extenso e infindável reboque que carrega coisas com letras maiúsculas e minúsculas, palavras que nos fazem sentir dor, que nos enchem de prazer e felicidade e que ficam para sempre atreladas à nós.
Papagaio, parto, separação, cão, gato, demissão, viagem, casamento, amizade, começo, fim, meio.
Com cicatrizes visíveis ou não, com alegrias plenas ou partidas, com sonhos feitos e desfeitos, traumas, boas e excelentes lembranças, passado, presente, futuro.
Prazer, sou a Mônica, mas muito mais do que você possa sequer imaginar, saber ou conhecer, pois sou várias letras com diferentes significados.
E amanhã irei renascer.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Sucesso


Ela era um daqueles bebês nascidos no começo da era virtual.
Onde tudo anda rápido demais, incluindo as mamadas no peito, pois como diziam, o que interessava de verdade era a qualidade do tempo despendido com os filhos e não a quantidade.
As quantidades se deixava para os congressos no exterior, a supervisão de subordinados, o aperfeiçoamento e crescimento na área.
Ela era um daqueles bebês nascidos em casa de pais casados, porém separados pela profissão, pois como diziam, o que interessava era ter a garagem para várias camionetes tão gigantes quanto um ônibus escolar.
Então, ela nasceu um pouco antes, não por gosto dela, é claro, mas a cesárea era necessária para que as férias dos pais coincidissem e ela pudesse ficar muito bem cuidada aos olhos da enfermeira que a ninava enquanto os seus pais balançavam em algum navio pelas lindas ilhas do Caribe.
Bem que se faz, diziam os amigos que já sabiam que bebês nascidos na era virtual já aprendem a pilotar um Aviãozinho Colher ao mesmo tempo que apertam teclas de seus pequenos tablets.
Mas ela tinha muito mais dentro dela do que passeios de recém nascida à restaurantes da moda e à shoppings borbulhantes de vozes.
E ela conseguia embalar com ternura a sua boneca Baby Alive no balanço da praça aonde a avó, sem a olhar, checava o seu feed de notícias no celular.
 Ela conversava com os pássaros e mostrava com ternura para a boneca as nuvens suaves e brancas que singravam o céu azul na lentidão bonita da vida.
Ela percebia que os dedos de sua pequena mão se alongavam com o passar dos meses, em meio às aulas de inglês, computação, patinação e nas seções com a fonoaudióloga.
Cresceu alegre e, para sorte dela, cheia de tudo que todos diziam ser bonito.
Escolheu um caminho com mais quantidade de coisas que todos também diziam serem inúteis e menos qualidade de outras que faziam narizes se torcerem.
E quando muitos a faziam se sentir diferente demais, quando tudo era igual à tudo, ela já adulta, vasculhava a caixa grande e quadrada guardada no fundo do armário.
Pegava a sua velha e querida Baby Alive e sabia que tinha seguido o caminho certo.
Pois a grande e linda praça, onde ela acalentava o seu bebê em um balanço tanto quanto à sua imensa solidão não estavam em uma caixa, mas para sempre dentro dela.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Machos e Mergulhos Profundos


Ontem, ao assistir outra reprise do filme Uma Linda Mulher pensei com meus botões que não, não é possível que um homem espere de uma mulher aquela versão lindíssima, sensual, patética, infantilizada, submissa e Inteligente Somente Quando Ele Quer do filme que, sim é antigo, mas muitos homens ainda vivem nos anos cinquenta, sim senhora.
Vivian, a Puta Boa Moça do filme canta na banheira de espumas como uma adolescente, ri de comédias antigas e bobas como uma menininha de sete anos, caminha como uma criança de cinco, obedece como uma de dois e abre as pernas como uma mulher que está sempre pronta para o tesão do seu macho alfa.
Ele, o Galã Rico Triste Solitário, se encanta e é arrebatado pelo fato de poder ser tudo que ela não tem e ao mesmo tempo despertar nela tudo que ela mesma nega, tipo um herói salvador de mulheres que só estão na lama pelo fato de ainda não terem cruzado com um protótipo tão encantador quanto impossível.
Então, me lembro de uma pesquisa informal feita por uma amiga, onde as perguntas eram referentes à freqüência de ajuda doméstica que as amigas recebiam de seus companheiros. Feita no WhatsApp mesmo, só com a intenção de aliviar a dor da pesquisadora de se ver às voltas com um Não Faz Nada e tentar descobrir se a situação desafortunada só morava em sua casa.
Então, me lembro de uma amiga terapeuta que me contou em sigilo e sem citar nomes que a maioria de seus pacientes estão com um tipo de impotência muito peculiar, brocham por medo de brochar.
Avisam as candidatas à cama, mesmo antes delas encostarem no lençol, que nas primeiras cinco vezes brocham, portanto elas que levem um bom baralho de cartas pro motel nos próximos cinco coitos.
E sabem porque? Pela sombra de independência e liberdade que ofusca o Sol Macho deles.
Então, me lembro de maridos que alegam, em sutis indiretas ou diretas cheias de escárnio, que suas mulheres não tem carreira, nem nada com que se ocupar e preocupar, pois lavar dez pias de louça por dia, fazer três maquinadas de roupa, alimentar sete cães, passar pilhas de camisas, regar todas as plantas, cozinhar, dar carona pros filhos e mais meia dúzia de coisas, não é nada, não.
Aí é a hora que me pergunto: o que eles querem afinal?
Confesso que beirando meio século, ainda não sei.
E dizem que nós somos complicadas!
Claro que somos, pois todo mundo que passou dos doze anos de idade se envolve com certos conteúdos de vida complicados, mas como os donos do Famoso e Super Valorizado Chaveirinho estacionam nas duas dúzias de anos, fica difícil compreender certos fatos.
E, não, não mesmo meus caros rapazes, esse Chaveirinho não vai solucionar todos os nossos problemas, pois graças à Deus nos movemos e nos realizemos com questões pouco hormonais também, SURPRESA!
E somos complicadas por sermos completas, sabe?
A gente não resolve no soco, nem cospe e ajeita as bolas em público.
A gente não estupra, nem sequestra, nem vira assassino em série, nem bate no marido ou em homossexual, ou tortura animais e estranhamos muito quando uma mulher faz tudo isso, pois a nossa complicação e a nossa TPM são muito mais inofensivas do que se vende.
Portanto, fica aqui a dica de alguém que sofreu na carne o fato de ter vivido muito tempo no século vinte.
Bem feito, rapazes! E aproveitem uma relação de verdade.
As mulheres de hoje são muitas respostas não dadas, muitas Julias Roberts engolidas, muita vontade de ter um parceiro, companheiro, aquele que divide o fardo da vida.
Muita vontade de fugir de padrões tão retrógrados quanto injustos.
E se elas exageraram um pouco, ok.
O mergulho é sempre mais profundo quando o corpo aquece demais.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Jardim


Ela tinha flores e buxos que podava e regava como mãe que amamenta seus filhos.
Cada planta tinha o seu lugar como retalho em colcha cerzida que serve para abrigar do frio e colorir a vida.
Deslumbravam o coração e os olhos as trepadeiras de jasmim, a grama pintada com o verde oliva, as camélias com vontades de maio.
Os coqueiros que cortavam o azul do céu com suas folhas que provocavam um tremeluzir nas cores fortes do sol.
Ela era essa vida que nascia em cada pétala e umedecia os dias como as seivas que nutriam a terra.
Então, ela perdeu.
Um pedaço dela foi junto quando ele partiu.
Não tão tarde, mas muito cedo na vida que ainda brotava.
E no adeus ela deixou parte do seu coração.
A parte que remexia o solo, adubava e via na insurgência das plantas a porção necessária da indocilidade de uma natureza exuberante e dona de suas hastes.
Ela perdeu a paixão selvagem de deixar os cabelos secarem ao vento enquanto introduzia novas sementes.
Ela perdeu os olhos que olhavam os dela e se rasgavam em um sorriso ao ver os pequenos labirintos de pingos d'ouro que ela cultivava.
O rosto dele que não se importava com mãos cheias de húmus nas unhas. 
E como ele, o seu jardim deu sinais de pouca saúde.
Na ausência da mãe que cuidava, o sol e a chuva não foram as carícias e o colo.
O verde tornou-se cinza nas réstias da beleza de antes.
A vontade murchou sem água.
O caule se curvou sem esperança.
E o jardim estava prestes a partir.
Feito ele.
Até ela receber uma flor.
Que replantou no jardim quase morto.
Que regou com o resto da vontade.
Que viu surgir forte, densa e colorida.
E tudo mudou.
Nada tinha o mesmo lugar de antes, os tons eram novos e certas sementes adormeceram aos pés dos brotos que penetravam o solo.
As cores de antes tinham novas nuances.
E outros olhos se rasgavam ao ver a força dela em amamentar a vida.
Como uma pequena flor ela furou o solo.
Respirou o ar.
Renasceu.
E redescobriu o amor.


domingo, 3 de janeiro de 2016

Sócrates e seu baixo astral.


Sócrates insistia no conceito de que a vida deve ser examinada para ser vivida plenamente.
Porém, os filósofos ao longo do séculos buscaram uma forma de atingir um estado que se chama ataraxia, que seria uma total imperturbabilidade.
Acredito que o pensamento de Sócrates e dos demais filósofos são divergentes, pois não existe chance de sairmos incólumes à perturbação ao examinarmos a vida.
Por isso, para este ano novo, pretendo buscar na ignorância uma forma de viver melhor.
Ao examinar algo dedicamos os nossos pensamentos e energia ao objeto em questão.
Pode ser uma obra de arte, um pôr do sol, uma pessoa, um cenário, não importa, seremos essa obra, esse sol e essa pessoa enquanto estivermos ocupados e entregues à essa investigação minuciosa e nela definiremos o que pensamos e sentimos a respeito.
Não quero mais examinar o que me agride, quero olhar, sentir e receber o que me faz bem, o que me provoca bem estar.
Porque o exame de algo que nos desagrada leva ao julgamento e o julgamento leva à pré conceitos que não dizem nada em relação à vida, exceto em relação à nossa própria história. 
Ao nos envolvermos com o ruim e ao julgarmos algo injusto temos que agir ou simplesmente morder os lábios, gritar, esbravejar ou sacudir a cabeça e essas ultimas atitudes só servem para poluir a alma.
Se para poder viver em paz eu tiver que virar o rosto e ignorar, tentarei arduamente.
Se para poder viver em paz eu tiver que deletar o ruim da minha mente, molhando as minhas flores no jardim, olhando para o céu ou rindo com as minhas filhas, tentarei com todas as minhas forças.
Porque estou cansada de reclamar do que não posso mudar.
E de consertar dentes depois de rangê-los.
Estou cansada de reclamar do país, das pessoas, da segurança do raio que o parta.
Estou cansada de examinar o nó sabendo que ele não irá se desfazer através das minhas mãos.
Se não posso desarmar a bomba, vou caminhar calmamente para bem longe da explosão e se eu não puder, vou fechar os ouvidos e pedir a Deus que me poupe dos estilhaços.
E só Deus sabe quantas bombas desarmei nestes últimos anos.
Houve época da minha vida que eu ignorava uma série de realidades duras pelo simples fato de possuir a ingenuidade da juventude (e a fórmula para a sobrevivência).
Eu era mais feliz?
Não, mas era mais tranquila.
Eu conseguia sorver mais do bom sem que o meu conhecimento do mal interferisse na degustação.
Era mais fácil habitar o meu mundo particular e tentar fazer dele o melhor lugar para viver sem precisar existir em lugares que eu jamais tomaria conhecimento sem a rapidez das informações.
Eu demorava mais dias para ver todo o sangue que jorra por aí e só tomava conhecimento quando o mesmo havia secado e o impacto do vermelho não era mais motivo para o meu próprio sangramento.
Eu abraçava menos causas e, portanto, deixava de fazer outras vidas mais cômodas, mas preservava a minha saúde psíquica e consequentemente física.
É egoísta pensar assim?
Pode ser, mas se não formos um pouco egoístas na hora de correr junto da manada, seremos os primeiros a cair entre os dentes alheios.
E o mundo sempre foi cruel, insano e feio, porém não existia uma forma tão hábil de ficarmos por dentro de toda essa feiura.
Como a ataraxia exige que as sensações sensoriais sejam suprimidas e sou movida à paixão, prefiro fechar os olhos.
Posso evitar em 2016 pessoas que não me dizem nada.
Posso evitar tudo que me agride e entristece.
Quero evitar o ruim.
Mesmo que seja cultura, mesmo que seja moda ou informação.
E quero que Sócrates vá às favas.