quinta-feira, 30 de abril de 2015

Somos Flores


O ser humano sofre pra caramba.
Em pequenas, médias e grandes doses, mas sofre.
É stress para tudo quanto é lado e vivemos no piloto automático, desviando, contornando, evitando, apaziguando, fingindo não ver, vendo, se magoando, espremendo, abafando, lutando.
Se temos a grande benção de poder caminhar, enxergar, falar, comer e sermos livres, somos reis, mas em um reinado que fica, dia a dia, menos bacana, onde a felicidade é um intervalo que deve ser sugado com fervor.
Hoje, de carro, dei passagem, em uma via movimentada de duas mãos, para uma moça que tentava cruzar por ambas. Interrompi o trânsito do meu lado e o motorista do outro lado fez o mesmo, para que ela pudesse pegar o sentindo contrário do que eu estava. Fluxo intenso, ela vislumbrando a chance de passagem, arrancou.
E o carro morreu no meio das duas pistas.
Ela voltou rapidamente a ligá-lo e conseguiu arrancar feito louca, não sem antes eu ver a fisionomia do seu rosto.
Pura angústia.
Uma angústia de quem vem se deparando com uma quantidade grande de contratempos temperados com pressão e de quem está por um fio e não precisa, no final do dia, de buzinaços no seu ouvido.
Ah, que bobagem, com tanta gente morrendo de câncer, o que é um pequeno stress do dia a dia?
Sabe-se lá.
Não é o nível de sofrimento que nos faz mais fortes, tanto que vejo muitos deficientes dando risada à toa.
A resiliência pode ser praticada, mas não por aquele que não nasceu para ser de borracha.
Ser forte, acima de tudo, não é de todos e ser fraco para os trancos da vida não é demérito, é apenas uma desvantagem nesse mundo de superações.
O meu jardineiro é o rei da poda drástica. Magrelo, ágil e comprido, agarra o tesourão como se fosse espada e sai desbravando o meu minúsculo jardim.
"A poda necessária, Dona Mônica", diz quando me vê quase às lágrimas depois de uma expedição.
A última poda foi à pouco.
Quando saí para a rua e vi o meu amado, e outrora repleto de flores, Bougainville completamente careca, com suas lindas folhas e flores atiradas ao chão, fiz beicinho.
Apenas três semanas depois do estrago, eis que vejo brotos se lançando ao céu e colorindo os galhos.
Furiosos por respirar, depois do ataque, se tornaram muito mais exuberantes para provar que é difícil tirar a vida de quem insiste em alcançar o ar.
Foi então que me dei conta de que ele não usou sua voracidade de jardineiro com as Alamandas e as Camélias.
Ele sabe que elas sofrerão com podas drásticas e é provável até que não sobrevivam.
Sábio, o Seu Vilmar.
Somos todos flores.
Nem todos Bougainvilles.
Mas todos dispostos à existir, mesmo com uma capacidade menor para suportar.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Adeus, foi ótimo!


Quando estamos em um emprego legal, ganhamos bem, temos uma certa estabilidade, dias péssimos, ruins, melhores, maravilhosos, altos e baixos, quase nunca reconhecemos que é o melhor emprego do mundo, certo?
Quase nunca nos arriscamos muito, quase nunca saímos pulando de alegria à cada final de expediente, tampouco abraçamos as pessoas e dizemos à elas "puxa, tenho um emprego lindo."
Dou esse exemplo para ilustrar o que penso das pessoas que sabem que irão morrer em breve e a sua relação com o tempo que lhes resta.
Enquanto temos esse emprego e temos uma expectativa de vida longa, somos como devemos ser: seres humanos. E por sermos humanos: inquietos, insatisfeitos, vivendo menos do que deveríamos, arriscando menos, gozando menos a vida.
Uma pessoa que não terá que vivenciar no futuro todo o drama que a vida representa, acaba por se agarrar à ela e fazer da mesma um cenário muito mais iluminado do que realmente é.
Esses dias, li sobre uma menina inglesa que deixou uma mensagem de milhares de palavras, atrás de um espelho, no momento que descobriu um câncer terminal, aos treze anos.
Lindas as palavras, mas ao meu ver cheias do ideal que criamos quando perdemos alguma coisa.
O fato de ter que partir antes do tempo cria uma bruma de positivismo em relação ao que se está prestes à perder.
Quem está para partir precocemente, e sabe disso, de repente enxerga todas as alegrias de viver e esquece as mazelas da existência, pelo simples motivo de saber que, sim, em qualquer percurso, por mais duro que ele seja, vamos encontrar flores, pássaros, cheiros maravilhosos, vistas estupendas, brisa nos cabelos e no rosto.
E parar de ver e sentir tudo isso, por mais que os pés estejam cheios de calos, é triste. Encerrar os passos, secar o suor, desafoguear o rosto e estancar o prazer de se movimentar é ruim demais, por mais que as nossas pernas doam.
Portanto, mesmo eu não estando à beira da morte vou arriscar um conselho, um conselho de quem não está à beira da morte, mas tem consciência de que a morte vive à espreita, pelo simples fato de estar viva.
Um conselho que não é dramático, nem radical, que é como defino essas mensagens de quem está de cara com a sua finitude.
Não acredito que devemos nos jogar na vida, mas nos permitir mais.
Não creio que devemos ler os mil livros, ver a centena de filmes, cair de boca em festas, viagens, saltos de pára-quedas, chutes de baldes, aventuras sem limites.
Penso que é preciso soltar o arreio que prende a nossa boca e procurar ser mais livre em cada pequena atitude.
Não estipular regras em relação aos prazeres acessíveis e simples como comer um grande doce, beber uma cerveja gelada, dormir até mais tarde, ir ao cinema no meio da tarde.
E não esperar que seja o fim de semana para se permitir um naco de felicidade.
Se permitir ser, não com o revólver apontado para o rosto, mas com a certeza de que temos um fim, mas, que se Deus quiser, menos próximo.
Já vi filmes onde os velhinhos ficavam muito loucos e desesperados para sugar a vida quando descobriam que estavam no final.
Para mim não é isso.
É muito mais do que essa febre de positivismo, autenticidade e quebra-quebra de regras e limites.
É consertar, sem quebrar, cada parte nossa que se prende à infelicidade.
Sem drama, nem mistério.
Nem desculpas.
Finalizar o que nos atormenta, permitir o que nos alimenta, mesmo sendo pecado perante os outros, mesmo nos deixando um pouco gordos ou menos perfeitos.
E sendo perfeitos ou não, um dia receberemos a conta.
E devemos pagar sorrindo, sem culpa.
Com a certeza que foi o dinheiro mais bem gasto do mundo.
Obrigada, o serviço foi ótimo.
Adeus.

domingo, 19 de abril de 2015

A Verdade


A verdade é uma das roupas mais desconfortáveis para se usar quando o tempo lá fora é de temporal de cinismos, bajulações intencionadas e uma necessidade absurda e obsessiva de se manter na superfície, flutuando no mar traiçoeiro do "tudo bem", "deixa pra lá", "eu não me importo."
Ninguém mais fala a verdade, pois falar a verdade significa responder que não, não está nada bem, quando alguém pergunta sem a mínima vontade de saber alguma coisa, mas no piloto automático das relações numerosas e fugazes.
Aparece lá em casa, bom te ver, sinto muito, viraram mantras robotizados e sem sentido ou sentimento, de seres que querem se inserir no contexto, mas não estão nem aí para as particularidades de cada elemento que o compõe.
Pois bem, cansei.
Não me interessa mais ser boazinha, agradar, não dar trabalho.
Não sou mais criança gordinha que engolia as verdades não ditas, disfarçadas de quilos de açúcar, para não ser marginalizada em uma escola alemã nazista, em uma família que desligava a luz e deixava às escuras quem ousasse ficar acordado além do horário estipulado.
Se ser grossa é dizer a verdade, estou mais grossa do que dedo destroncado.
E ando me sentindo muito bem, obrigada!
Não gostei? Falo.
Não espero o ressentimento virar canivete escondido no bolso, pronto pra rasgar e dilacerar o outro com atitudes sanguinárias emolduradas por um sorriso branco.
A verdade é mais dura, mas é muito mais imaculada.
Escondê-la dentro de si, nos faz rabugentas, vítimas, ressentidas, chantagistas emocionais.
Muito mais difícil dizer que não se gosta disso ou daquilo, do que se deitar de lado em um sofá, feito diva dos anos cinquenta, com lágrimas borbulhando, sobrancelhas arqueadas e cara de quem quer vomitar, mas não consegue.
Mas é muito mais honesto.
E bonito.
Ser verdadeira pode ser confundido com mau humor, TPM, insanidade.
Ser verdadeira pode ser confundido com excentricidade, deslocamento e até loucura.
Mas seremos a nossa própria companhia para o resto das nossas vidas.
E, por favor, que possamos nos reconhecer.
Nos respeitar.
E nos amar.
Porque ninguém o fará melhor. 

sábado, 11 de abril de 2015

Bem vindos, cabelos brancos.


Esses dias, observando um jogo de vôlei na areia, fiquei encantada com a exuberância da juventude.
A da mulher, claro, pois os homens jovens, na sua maioria, são desengonçados, cabeçudos, magrelas e, de brinde, muito chatos com sua voz em falsete, sua energia convulsiva e seu comportamento que beira a bestialidade, quando em bando.
As meninas transpiram viço, graciosidade e energia vital. Ondulam os quadris como as sereias, mexem nos longos e saudáveis cabelos, se aproveitam da firmeza e agilidade do corpo para se deslocar entre os reles mortais, sabendo serem ninfas neste mundo ordinário. 
Talvez por todas essas benesses é que sejam mais cobradas em futuros próximos.
Pois bem.
É tudo muito lindo, mas só Deus sabe como amo envelhecer.
Cada ano que ganho é um nó que desato.
Emocionalmente nem se fala, mas falo dos nós que apertamos, dessas amarras que criamos na intenção de estar no padrões físicos estipulados por uma sociedade doente.
Já disse aqui que o meu lado infantil se envaidece quando dizem que pareço uma menina, ao mesmo tempo que fico chateada. Primeiro porque sei que posso parecer menos idade, mas menina é bastante exagerado, depois porque penso que uma menina jamais  gostaria de ouvir um elogio do tipo "nossa, você parece uma mulher madura!", mesmo tendo mulheres maduras mais atraentes do que muita menina.
Por que?
Porque a nossa sociedade é doente e preservar o culto à não velhice é uma obsessão constante.
Já ouvi que eu tinha uma barriga que nem parecia ter gerado filhos, isso há alguns quilos atrás.Como assim? Depois de gerar filhos a barriga vira o que? Uma barriga que gerou filhos, ora! Não negativa, não tanquinho, não reta, mas, ao meu ver, muito mais bonitinha do que a dessas Mulheres Halteres que andam por aí. Não quero ter uma barriga que não acomodou minhas filhas dentro de mim, obrigada!
Tive a surpresa de ouvir da minha sogra de 89 anos (que nunca quis parecer uma eterna menina no decorrer da sua vida) que pintava os cabelos, pois ficava velha de cabelos brancos.
Ops! Ela não é velha? Claro que é, mas não vejo nisso uma ofensa.
Mas a sociedade doente vê.
Tanto que criaram o absurdo da melhor idade como um presente bônus para o total desfortúnio de ser velho.Tipo, aceite esse título já que você entrou no inferno.
Certo, as limitações físicas graves, consequência da idade avançada, podem ser complicadas se a pessoa não tiver se exercitado, se alimentado bem e se cuidado no decorrer da passagem dos anos, mas esquecemos que aprender a caminhar, largar o peito materno, receber o primeiro dente, perder a virgindade, dentre outras diversas coisas, deve ter gerado bastante sofrimento.
Aqui, pensando com meus botões, acho que já devo ter debulhado esse assunto de envelhecer.
Mas é que não aguento ver tanta gente tentando tirar suco de pedra, se rasgando em tentativas patéticas de virar um protótipo de si mesma, se escravizando nas concepções sexistas e machistas de que as mulheres devem ser eternas Lolitas.
A maturidade me encanta e vejo em uma mulher madura uma beleza tão profunda que varre feito pó toda a exuberância física das muito jovens.
Vou mentir e dizer que não puxo o rosto na frente do espelho? Que não olho com olhinhos maldosos os meus joelhos?
Não vou. 
Porque minha auto estima foi mutilada muitas vezes, como fazem com todas as mulheres desse planeta.
Porém as que, com esforço, conseguiram manter a personalidade em meio à tanto culto à robôs, são felizes, sexuadas e livres, mesmo quando a biologia diz que na menopausa tudo acaba.
E é dessa turma que faço parte.







quinta-feira, 9 de abril de 2015

Ando muito lúcida


Eu ando sem muita vontade de escrever.
Porque uma das coisas que me faz querer digitar loucamente e com os olhos esbugalhados de ânsia, é aquela dose de loucura necessária para fazer certas viagens interiores.
E essa loucura em mim, chega quando estou muito mimada pela vida e preciso de agito.
Ando muito lúcida.
As adversidades me fazem assim. 
Sou o tipo de pessoa que é capaz de fazer uma respiração boca à boca sem despentear o cabelo.
Viro mármore nas piores situações possíveis pois, como defesa, recolho na hora todo e qualquer sentimento que possa atrapalhar um desfecho tranquilo de um episódio trágico.
Sei disso, pois já vivi muitas situações limítrofes desde a mais tenra idade.
Quando o gás falta, alguém me corta no trânsito, me xinga, fura a fila, perco as estribeiras, pois sei que posso, afinal, ser menos nazista com os meus sentimentos e deixá-los menos puros e nobres, pois todo mundo precisa de um palavrão bem dito, de vez em quando. 
Porém tenho sido provada ultimamente.
E a lucidez impecável e branca anda de mãos dadas comigo.
E tenho descoberto muito.
Não somos tão amados quanto pensamos ser, podem ter certeza.
Não somos tão pouco amados  quanto pensamos ser, podem ter certeza.
A vida é dura, sim senhor, duríssima e quando temos saúde, não temos dinheiro, quando temos amor, não temos tranquilidade, quando temos tranquilidade, não temos tesão.
E é preciso levantar todo o dia.
Da cama, da cadeira, do chão.
Perdemos todos os dias.
Ganhamos todos os dias.
Ficamos velhos e feios, porém sábios.
Fomos jovens e lindos, porém escravos das benesses e do preço alto da juventude e suas incertezas e angústias.
Sai batalha, entra confronto.
Ando sofrendo um bocadinho.
Mas, olha só, deve ser menos do que penso, pois estou aqui novamente escrevendo.
Sinal que ando me movimentando.
Sai a rigidez do susto.
Estou me levantando.
Até ser mimada pela vida.
Cair. 
E fazer tudo de novo.

domingo, 5 de abril de 2015

Bala de Goma


Eles tiveram todos os motivos do mundo para se fazerem dois.
Mesmo o cada um sólido que habitava neles, cedeu espaço, esticou-se e expandiu-se na intenção de abrigar o outro.
Eles eram sonhos divididos há muito anos.
Mas alguma coisa havia caído, sido deixada para trás naquele rastro de quatro pegadas.
E, apesar de ele ainda reluzir ao brilho do sol dela, sentiu que já não fazia o mesmo.
Não que não quisesse, era ela que não permitia.
Tudo que ela havia feito, um dia, na intenção de capturar a sua alma, já não era mais importante.
Uma gaiola de portinholas abertas lhe era oferecida, não claramente, mas nas pequenas atitudes.
Ela esqueceu que ele não gostava de balas de goma e as oferecia sempre que abria um pacote para ela.
Ela teimava em assuntos bobos, como para validar a falta de entrega, para validar e descontinuidade da intimidade, a interrupção da cumplicidade.
Ele compreendia esse ímpeto dela em não completar mais as lacunas, não preencher mais os seus espaços, mas não tinha a coragem de colocá-lo em palavras por medo de ruir o que já estava trincado.
E as luzes da casa, outrora apagadas por ela, permaneciam acesas, desafiando, gritando o desinteresse em manter as coisas diferentes.
Ele passou a respirar esperança, mesmo sabendo que não há oxigênio que dure quando a combustão é perene.
Desligava as luzes, cavava sorrisos, inventava motivos para viagens.
Aceitava as balas de goma.
Fingia não perceber o desinteresse no que dizia.
A colocava no colo, mas o colo já não virava mais motivo para eles fazerem amor, mas um terreno inóspito onde ela sentia necessidade de rir. E o deixar.
Então, ele fez mil coisas das quais não gostava para preencher outras tantas que lhe haviam escapado.
Também não resgatou a felicidade, pois ela não pertencia somente à ele, mas aos dois.
E, desesperado, foi buscar aquilo que havia caído no rastro de quatro pegadas.
E descobriu tudo.
Recolheu o seu amor do chão.
O amor à si mesmo.
O colocou de volta no lugar.
Não apagou mais as luzes, não a colocou mais no colo, não inventou mais viagens.
E foi feliz.
Sem nunca mais colocar na boca uma bala de goma.