domingo, 30 de agosto de 2015

Aconchego


O melhor cheiro de uma casa é o de comida recém feita.
Fumaça de afetos com aroma de alho.
É o cheiro de chuva que entra com o vento através das janelas esquecidas abertas por mãos que se esquecem de fechá-las, mas deixam de ser esquecidas na hora de virar carinho no alisar de peles expostas.
O melhor cheiro de um casa é o de sofá usado, o de tapete gasto e o de cabo de panela queimado, panela que sorve fogo e expira vapor de arroz com salsa.
É o cheiro de amaciante na máquina que trabalha limpando tudo que se suja quando se vive de verdade.
É de patas e de pêlos.
De toalhas esquecidas em cima de camas.
De sabonetes baratos, de bolo assado, de bacia de roupas secas ao sol de verão.
O melhor cheiro de uma casa é o de grama recém cortada, o de amores consertados e o de tréguas na brigas por causa de roupas de menina.
É o cheiro de lágrimas secas e sorrisos molhados.
De malas prontas e de malas desfeitas.
De leite derramado, de incenso de flores, de cabelos recém lavados.
O melhor cheiro de uma casa é o de corpos que se conhecem.
E cada casa tem o seu cheiro.
Que é somente dela e somente nosso.
E mesmo se não for mais a minha casa, aquela de todos os cheiros conhecidos, não importa, pois carregarei todos eles para sempre comigo.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Luzes e Chaves Mágicas


O amor é uma cartela de cores com diversas nuances.
E essas cores se apresentam para nós conforme a forma que viramos a cabeça, conforme o tempo da nossa alma, os óculos que usamos, o nosso estado de espirito e muitos outros fatores que fazem de cada amor uma experiência única, mesmo ela sendo de episódios parecidos.
O amor é complicado, isso é certo.
Muitas vezes, não amamos uma pessoa, amamos o que essa pessoa nos faz ser.
Esse alguém que pode ser totalmente diferente de nós, mas pode ser capaz de fazer com que nos sintamos felizes, arrancando aquela felicidade guardada e a colocando para dançar nua no meio da sala.
Pode nos estimular a ter coragem, ousadia, a termos vontade de estarmos vivos nessa mecanização da existência.
Alguém que não amamos pode ser o dono da chave mágica que libera as nossas amarras e nos faz sonhar com escaladas e mergulhos profundos ou simplesmente nos concede a permissão para falar bobagens e rir em um mundo de pouco riso.
E nesse passe de mágica, nos vemos sendo um pouco menos duros com a nossa vida, menos controladores, mais aventureiros, loucos e livres.
Essa pessoa pode não ser a dona do nosso coração, mas o chaveiro que, por experiência e vontade, é conhecedor de algumas chaves extras que abrem portas trancadas com ferrolho ou simplesmente aquele que liga o interruptor de luz.
E, quando ligada, a luz é totalmente nossa.
É o nosso amor por nós mesmos que se vê livre do escuro onde estava e vai brincar na rua e correr nos parques da alma.
Nem sempre caminhamos ao lado, em passos estreitos, de quem nos faz esse bem enorme.
Pode ser apenas aquele amigo que vemos vez ou outra, aquela pessoa que não veio ao mundo como nosso irmão, mãe, marido, namorado ou filho, mas como um bônus, uma recompensa pela falta que todos esses afetos nos fazem quando o assunto é sobre chaves e luzes mágicas.
E podemos simples e egoisticamente não amá-lo.
Podemos ser gratos por ele não ser nada parecido conosco, por não dividir ideias, não concordar com opiniões, mas por apenas ser aquele que liga as luzes ao entrar e as desliga ao sair, sem nunca ficar para ver o que acontece quando as mesmas não estão acesas. 
Na escuridão não são todos que estão dispostos a nos encontrar.
E são esses quem amamos.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A Coisificação das Pessoas


Acho muito, mas muito interessante observar como as pessoas se coisificam.
Explico.
Tem uma rapaz que é porteiro do clube onde jogo tênis.
Porém, ele começou no clube cuidando da manutenção das quadras, ligando luzes, molhando, passando o escovão.
Uma rica de uma pessoa, sempre tinha uma piada pronta, me chamava pelo nome, fazia questão de me acenar, mesmo de longe.
Pois bem, há alguns meses ele foi promovido a porteiro.
Deixou de lado as roupas rotas e sujas de pó de tijolo e passou a vestir uma reluzente, engomada e branca camisa social e mais uma elegante calça escura.
Virou outro homem.
Coisificou no novo personagem e não me cumprimenta mais.
Parado, de rádio transmissor em punho, eleva a cancela para meu carro passar e me olha com um olhar de Donald Trump, indicando a passagem.
No seu tosco entender, a promoção o fez diferente, o colocou em um patamar que merece um comportamento frio, duro, formal e besta.
Ele se entregou à coisa, despersonalizou sua conduta e se vendeu para a ilusória sensação de que é outra pessoa.
Ele não é outra pessoa, é a mesma, porém em um trabalho melhor.
Outro exemplo.
No momento em que as pessoas entram nos seus carros, elas viram o carro, não as pessoas dirigindo um. 
Porque se coisificam em Honda, Chevrolet e Fiat e saem cortando outros Honda, Chevrolet e Fiat como se todos fossem apenas carros e esses apenas competem, ultrapassam, dão fechadas e disputam espaço nas vias da cidade.
Esquecem a educação, o bom senso, a gentileza, pois estão protegidas pela carcaça de lata e pela ilusão de que podem ser as péssimas pessoas que devem ser no dia a dia, simplesmente porque estão coisificadas em lataria.
Se em uma fila de banco fizessem o que fazem no trânsito, iriam ser consideradas lunáticas.
No Facebook não é diferente e muitos não postam, viram as postagens.
Não interagem com os supostos amigos, não curtem quase nada, não comentam, pois viraram links, fotos, quadros de auto ajuda, dicas, filmes de receitas e de comidas. 
Não estão ali para ser relacionar virtualmente, mas para postar, postar e postar, muitas vezes até sem nem dar a mínima pista de que existe um ser vivo por trás de cada publicação. 
E nos esportes amadores não faltam exemplos.
O cara começa a correr. 
Vicia, pois corrida vicia.
Começa a competir, ter grupo de corrida.
Pronto. 
Parou de correr, virou a coisa corredor.
Não sai de casa sem os tênis Asics, sem a camiseta da última prova feita, sem os óculos e a viseira da hora e toda a marra envolvida.
Não considera corredor quem não faz o tempo tal ou usa a meia tal, considera pessoas que gostam de correr, mas não sabem correr.
E deixo claro, não estou falando de profissionais.
E por aí vai.
É bem pertinente lembrar que não somos nossa casa, nosso carro, nosso trabalho, nossas roupas e nossos bens ou o nosso lazer, estamos vivenciando tudo isso, usufruindo de coisas e não nos tornando as mesmas.
Mais pertinente ainda é lembrar que somos seres vivos enquanto respirarmos e nesse ínterim, tudo é temporário, passageiro e transitório.
E que hoje é uma coisa e amanhã é outra.
Então, não é aconselhável se prender e se transformar em isso ou aquilo.
O que interessa, na verdade, é conseguir passar por aqui tendo tido as melhores interações possíveis, a melhor vivência, sem se prender à rótulos, imagens ou condutas que nos definam como coisas.
Pois nossas melhores lembranças sempre nos remeterão às pessoas.
E é o que somos apenas, no final das contas.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Quem nos Devora


Muitas vezes, sentimos que nos foi tirado algum pedaço.
Que somos vítimas de situações e pessoas que nos machucam e nos fazem sangrar.
Nossa pele se dilacera em mordidas de dentes invisíveis, o tecido amolecendo e soltando-se, expondo a carne frágil que sempre tentamos proteger.
Porém, predadores não se aproximam sem alguma forma de encorajamento.
Pode ser o cheiro da fragilidade, da ferida exposta e não curada, do abandono e da solidão, do extravio em meio à manada.
Pode ser a percepção arguta da vulnerabilidade, da carência e da falta de cuidado e amor para conosco.
Não somos atacados mesmo se, sem querer, não exibirmos membros fragilizados e incapazes de no coice se defender e na corrida fugir.
E temos que entender que a culpa não é daquele que morre de fome, mas daquele que torna-se presa fácil ao abaixar a cabeça ou procurar o pasto em uma savana repleta de leões.
Uma corça não pode ser a melhor amiga de um leopardo e se o faz é na intenção inconsciente de entregar a sua vida, com surpresa e horror, às garras que lhe surpreendem em uma surpresa quase esperada.
Somos os culpados ao sermos devorados.
Em algum momento resolvemos baixar a guarda e as orelhas.
Em algum momento nos foi conveniente beber na água onde nadam os crocodilos.
Nos foi sedutor correr ao lado dos guepardos e hienas.
E se agora a nossa respiração está se extinguindo, o nosso coração está enfraquecendo e o nosso pescoço está sufocado por presas, talvez seja a hora de simplesmente aceitar.
Fechar os olhos.
Distensionar os músculos.
Para na força da aceitação de que estamos prestes a sucumbir, possamos reabrir os olhos, reerguer o corpo, escoicear o mal que nos aprisiona e correr.
Evitando para sempre os lugares onde é mais fácil morrer.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Doma


Lá fora ele luta, mostra os dentes se for preciso.
Aqui dentro descansa a alma e me entrega o seu corpo.
Deixa eu brincar com os seus cílios e o seu umbigo e permite eu achar graça dos seus cabelos.
Lá fora ele economiza sorrisos, pisa forte e lidera pessoas.
Aqui dentro amacia a alma, sorri a toda hora, escuta com as mãos e fala com os olhos.
Desenha com os dedos, caminha com o coração.
Revela segredos.
Se deita em uma viagem que não é aquela de sempre, mas é somente nossa.
Lá fora ele ruge, escolhe palavras.
Aqui dentro ele geme, diz coisas que ninguém entende, todas elas, para mim, completas em seu significado.
Lá fora ele é bicho selvagem.
Aqui dentro é bicho domado.
Que se amansa e desmancha no amor dos meus braços.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Obrigada à Você


Eu tenho tanto a agradecer.
Quando vejo a lua.
Quando, de pés descalços, piso a calçada da minha rua.
Em um verão de perfumes.
Nessa rua que tenho casa e abrigo nas noites frias de inverno.
Uma porta que se fecha e se abre e um caminho de flores que rego.
Tenho tanto à agradecer.
Por não ser estatística em batalhas, em doenças do corpo e dores incuráveis da alma.
Tenho rugas de sorrisos, outras tantas de prantos que deixaram as suas marcas, apesar de já terem extinguido as suas lágrimas.
Minha pele tem manchas e um viço que cada dia se afasta, provas de um corpo que esteve banhado de sol e pôde ter sua pele exposta.
Não passo em branco, ah não, imaculada, intocável e etérea.
Passo riscando letras, borrando páginas, usando fórmulas para aprender a pisar com leveza, mesmo usando as botas mais pesadas.
Troco de roupa, de vontades, de gostos, de pele, de cabelos, de idade.
E perdendo sempre, sei tudo que ganho.
Eu tenho tanto à agradecer.
No escutar diário do ritmo que, noite e dia, faz o meu coração incansável.
Bater. 

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Bengalas e Pontes


Nos vemos naqueles momentos em que o caminho que trilhamos repentinamente torna-se desconhecido, desconfortável, mas ficar parado nunca foi uma boa opção, então seguimos com o coração apertado e a mente inquieta com o que está por vir.
Nem sempre é o caminho, mas nós mesmos que o percebemos de forma diferente e ele passa a ser desconhecido pela falta de flores e paz que outrora existiu.
E vamos dando nossos passos naquela trilha de repente selvagem, com ameaças que se esgueiram, principalmente à luz do luar, onde sombras se tornam monstros que assombram o nosso descanso noturno.
E quando não é ainda hora de correr, pois correr vai nos tirar a força de que precisamos para analisar os desvios e os obstáculos, nos agarramos à pedaços de pau que nos servirão de amparo às pernas cansadas. Nos agarramos à conversas com árvores e bichos para não sucumbir ao desespero da solidão e criamos toda a espécie de subterfúgios para aliviar os ferimentos que uma jornada em terreno inóspito pode ocasionar.
Ou podemos ir em busca das pontes que nos levarão à outro lugar.
Talvez parecido, mas não mais o mesmo depois de ter sido interrompido por águas que o obrigaram a se modificar.
As bengalas, a abstração da realidade dolorida com recursos que estão naquele momento à nossa disposição são formas válidas de conseguir se manter forte em uma jornada que se tornou adversa.
Porém, elas podem aliviar enquanto temporárias, enquanto não estivermos prontos para ter a coragem de, finalmente, ir em busca das travessias.
Se forem um recurso permanente na intenção de retardar para sempre as dores de uma mudança, podem se tornar hábitos destrutivos, infelizes, obsessivos e auto destrutivos. Podemos nos tornar pessoas destrutivas, infelizes, obsessivas e auto destrutivas também.
Os recursos no alivio da dor são válidos quando vemos neles uma forma de aplacar a dor de uma caminhada difícil, mas são inúteis se, na dificuldade, não tivermos o discernimento de perceber que o trajeto será para sempre o mesmo enquanto não tivermos a coragem de atravessar.
Ou não.
Pois existem atalhos, bifurcações e curvas que nos tiram das pedras sem nos tirar do caminho.
Nos levam de volta à ele, mas em um cenário diferente, onde o próprio trajeto se torna diferente e onde os tropeços do passado nos fazem perceber o quão o caminho é gostoso de percorrer, afinal de contas.
E podemos não mais querer as pontes, mesmo elas existindo para sempre.
Mesmo sabendo que elas são feitas para atravessar.
O que é preciso, afinal, é sempre se engradecer, se regojizar e ser feliz na nossa caminhada que, um dia, chegará ao final.