sábado, 30 de agosto de 2014

Monstros no Espelho


Ninguém se cura vivendo em um castelo de areia.
Ninguém se cura sem colocar o dedo na própria ferida para que ela sangre e expurgue as verdades escondidas em uma casca cultivada por anos.
Ao menos que a intenção seja viver na fragilidade de paredes que se arriscam na vontade das águas. Que tremulam em qualquer sinal de umidade. 
Porque então teremos raiva das verdades, pois elas podem devolver um reflexo feio do espelho, um reflexo que tentamos esconder de nós mesmos com pilhas de maquiagem.
Para nos curarmos de todas as mazelas de nós mesmos, temos que nos olhar de frente, de lado, de cima e de baixo e aceitar que não somos aquilo tudo que gostaríamos, mas tentamos ao máximo e tentando conseguimos ser bem melhor do que seríamos.
Ninguém se cura enganando aos outros como um fantoche patético de más atitudes travestidas em frases de efeito e pinceladas de verniz na pele exposta.
Porque se curar dói.
Como remédio amargo, como picada de agulha, como cicatriz nova.
Se curar envolve sermos os únicos culpados pela nossa má sorte, pelas maçãs que plantamos, mas que esperávamos que brotassem morangos.
Não precisamos de um frágil castelo para ser feliz, pois a felicidade pode ser mais barata do que ostentar posturas, menos cansativa do que negar defeitos, mais bonita do que uma maquiagem pesada no nosso caráter.
Ninguém se cura esperando dos outros o que se deve dar à si mesmo.
Ser feliz é escolher a verdade para nós.
Em cada mínimo detalhe.
É escolher o que e quem nos faz bem, é viver ao lado do amor e ter a coragem de reconhecer o quão obsoletos estavam os nossos valores, o quão mal era o bom.
Ser feliz é a ter a coragem de se olhar no espelho.
É ter a lucidez de perceber que se escondem certos monstros nos nossos cabelos.
E ter vontade de mudar.
Então a nossa imagem finalmente se suavizará.

Amor com validade vencida


Ela tá cheia de mim.
Me disse isso há pouco, quando eu tirava as minhas cuecas ultrapassadas e vestia o meu pijama mais ultrapassado ainda, para dormir às nove horas e cinquenta e oito minutos de uma sexta-feira com tempo bom.
Eu. 
Apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no bolso e vivendo nessa porra de país que não faz dinheiro nenhum crescer, só aquele ganho nos campos de futebol, nas heranças, no tráfico e na sonegação.
Eu.
Que trabalho. Mesmo que esse trabalho não seja nada nobre, nem exija doutorado e essas porras de títulos que só servem para fazer os idiotas serem contratados por alguém mais idiota ainda, mas que se acha o idiota mais bem sucedido do mundo porque alguns idiotas cobraram caro para falar um monte de coisas que só servem para alguns.
Ela tá cheia de mim.
Justamente pelas coisas que a fizeram, um dia, encher os olhos de lágrimas e abrir as pernas com a emoção de quem acaba com a fome na África.
Agora nem sequer um sorriso ela abre, quisera abrir as porras das pernas que estão bem peludas, diga-se de passagem.
Ela não sabe que a gatinha loirinha, com os cabelos chapados que encostam na bundinha empinadinha, está me dando o maior mole enquanto eu ensino ela à dedilhar (que dedinhos!) as cordas do violão.
Sim, porque tem gente que acha legal eu ser músico e ensinar às pessoas todos esses mistérios e poesia que é possível arrancar da música.
Só que ela tá cheia de mim.
Então ficou cega para tudo aquilo que sou e que ela mesma disse que a fez respirar de novo.
Pelo visto a respiração tem prazo de validade e aqueles suspiros que eu provocava estão vencidos e fazendo mal à saúde.
Dela, diga-se de passagem.
Porque eu também mudei muito, amadureci, revi a minha vida e essas boiolices todas, mas continuo sendo a mesma porra de cara.
Um cara com uma puta vontade de viver.
Um cara que se orgulha de ser o que é.
E...
Porra! 
Caraca.
Eu tô muito cheio dela.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Balde e Ressaca


Como a gente é grande e pequeno, feio e lindo.
A gente que se adora e se odeia e tem esperança e desespero sendo vizinhos de janela dentro das ruas que são as nossas artérias.
E é uma guerra interna essa coisa de existir.
Porque a nossa doença, vez ou outra, faz a gente querer que a Gisele Bundchen se dê mal pelo menos uma vez na vida, seria pedir muito?
Ou faz com que a gente se ache um monte de coisa dentro de um monte de lata que foi fabricada por um monte de gente igual à nós.
A gente também tem vontade de morder feito tigre, mergulhar feito baleia e amar sem papel ou regra certa para isso ou aquilo. Porque a gente também é bicho e gente ainda por cima e é por isso que a nossa caixola anda sempre tão aquecida, precisando de assopros alheios.
Ou apenas assopros.
Do próprio vento.
Porque cansa demais ter que ser culto, bonito, moderno, rico, saudável, sexualmente ativo.
Cansa tanto que nos deixamos abduzir por uma música ensurdecedora em uma noitada regada à tequila.
Cansa tanto que a gente tem que ser exímio em tudo, controlador de todas as tarefas do dia.
Tem que ter foto bonita no Facebook mostrando aquela felicidade perene que de perene não tem é nada, pois ninguém põe foto de rosto inchado depois de brigar com os filhos, o marido, o namorado, os amigos. 
Mas a gente é isso.
Uma vontade louca de ser amado, por favor, de qualquer forma, mesmo que essa forma seja torta.
A gente endireita depois.
Em todas as nossas brigas de trânsito, comilanças, bebedeiras e histeria se esconde a vontade absurda do colo que nos foi negado. Por quem, afinal?
Então dá-lhe compras, cachaça, sexo rápido.
Ou quem sabe um mergulho nos livros, no trabalho, no exercício? Quem sabe um balde bem chutado?
A gente é isso.
E é tão bom!
Exceto por ter que procurar o balde.
E o pior.
Com a maior ressaca.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Mesmo Aqui.


Eu era tão pequena.
Dentes ainda de leite.
Ingenuidade intacta.
Ela me fez a tristeza imensa, do tamanho do mundo.
Então eu chamei "papa".
Como chamo ainda quando ele permite que eu exista na sua vida.
E ela riu.
Não, gargalhou.
"Pode chamar o quanto quiser, vai ser difícil ele te ouvir."
Ele.
Que estava em outros oceanos.
Outras terras e fronteiras.
Mas não foi a distância que me fez calar.
Foi a certeza na voz dela de que que ele jamais estaria disposto à ouvir.
Mesmo perto.
Mesmo ao lado.
Mesmo aqui.

Reconhecimento


Não é preciso plantar flores para tornar a vida mais bonita e perfumada.
Mas é necessário reconhecê-las em nosso caminho.
E preservá-las.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Esmalte de verão


Eu coloria cada unha com uma pétala.
Em uma infância feliz.
Onde os bancos das bicicletas eram forrados com capas fofas do Inter ou do Grêmio e as buzinas compradas no Bazar Praiano de uma praia que era minha e que oferecia como único perigo os siris que fechavam as suas garras em dedos desprevenidos.
Eu me bronzeava sem medo de adoecer a pele, depois dela se tornar tão bonita e dourada.
Raspava a barriga nas planondas, comia as uvas doces da parreira do meu avô, ouvindo o afiador de facas anunciar um verão que se aproximava, recheado dos cantos das cigarras.
Não secava nunca os cabelos e não tinha pressa em sair do mar.
Meu maior desafio eram os livros e a tabuada.
Eu era livre da forma mais libertadora que pode existir.
A liberdade de pensar.
Tinha um futuro de páginas em branco e a felicidade era picolé Chicabom e o sorriso do garoto mais lindo que caminhava nas areias fofas da Guarita.
Tinha poucas roupas, mas muitas alegrias.
Meu uniforme eram as Havainas e algumas camisetas que eu idolatrava.
Os amigos eram de verdade.
Os mosquitos morriam aos som do Flit e o meu lanche da tarde era puxa-puxa, pão de milho (do padeiro que vendia suas delícias na carroça puxada por um burro), batida de banana e pipoca doce.
Ah, o som da buzina do pipoqueiro antecipava o prazer que dobrava a esquina.
"Me dá dinheiro!"
A casa era pequena, mas lembro de cada quadro ilustrado por negras africanas e seus imensos cabelos e colares.
Lembro da correria por causa dos gambás curiosos, dos jogos de tabuleiro, do Noskote grudando nos cabelos.
Da fome insaciável, do sono na esteira com borda vermelha, do colchão de ar nas marolas da Cal.
Posso não ser mais criança.
Mas ela ainda mora dentro de mim.
Principalmente quando escuto o verão.
Pois somos cada lembrança, cada calor, alegria ou decepção.
Guardamos todos os amores, sons, gostos e cheiros.
Cada pedacinho de felicidade ou fissura nos sonhos.
Somos imensos de tantas vivências.
E pequenos quando tentamos entendê-las.
E não simplesmente vivê-las.

domingo, 24 de agosto de 2014

Eu bebo para aguentar o mundo


Esta frase do título foi dita por um grande amigo que quando não está muito envolvido em não ser ele mesmo (e ganhar prestígio e dinheiro) é uma das poucas pessoas que a opinião ao meu respeito eu considero demais.
Pois bem.
Eu transitava, nesta mesma época, por um lado bastante escuro, poi perdi muito tempo olhando para esses lados escuros do mundo que nos sequestram facilmente.
Uma época em que entregava a minha alma de bandeja à todas as mazelas que nos cercam, pensando que, desta forma, faria alguma diferença.
Então fui procurar uma profissional para que ela me ensinasse a não chorar tantas dores que não eram minhas e tentar não desistir de acreditar que para todo o mal existe alguma cura.
Nas nossas conversas citei a frase essa para exemplificar que, como eu, tantos sofrem da dor aguda de fazer parte de tantas coisas absurdas.
Ela enlouqueceu.
"Que mundo horrível é esse que esse seu amigo vive? Que vida Pouca Coisa ele leva, não é?"
Quando vamos à um especialista na saúde mental, alimentamos uma fantasia infantil de que ele tem uma varinha mágica no alívio e no esclarecimento das dores e, muitas vezes, esquecemos que são seres humanos que projetam na sua maneira de diagnosticar as suas próprias neuroses e obsessões. Por isso, temos sintonia ou não com determinados profissionais.
Descobri, naquele dia, que a minha vibração passava longe dessa pessoa e fui embora.
Um diploma, um doutorado, mestrado e cursos no exterior não serviram para aproximá-la de mim e muito menos para me curar, pois a verdadeira cura se dá por amor, mesmo que esse amor seja um negócio. Quem não tem amor para dar pode oferecer soluções, mas não amparo.
Quem não vê as misérias com o coração, pode ser um ótimo profissional, mas dificilmente será uma ótima pessoa. E não costumo pensar que uma pessoa é separada por linhas definidas, tudo acaba se misturando, uma hora ou outra.
Precisamos de algumas doses de anestesia, que são diferentes para cada um de nós, para suportar algo que sabemos ser inóspito.
Quem, como ela, se sente flutuar acima da dor por possuir um status acima da média, não conhece a maneira de consertar uma alma que quebra, pois julga que todos os pedaços estão à mão para serem colados, quando, na verdade, muitos escapam e param em frestas.
Quem aguenta o mundo sem nunca se desesperar, sem tomar um porre, chorar, sair correndo, desistir para recomeçar, cair para se levantar, pensar em sumir ou dormir, é um herói.
Mas daqueles que tem apenas uma identidade e nenhuma fraqueza e, por isso, não salvam ninguém, pois não existem nem nas telas do cinema.

domingo, 10 de agosto de 2014

Pai


A enxurrada de declarações de amor e agradecimentos aos pais, nesse dia, de uma certa forma ressuscita o aperto no coração de quem não pode fazer o mesmo.
De quem, por algum motivo triste, nunca teve o colo de um pai, um abraço apertado, perguntas sobre a escola, a mão grande (enorme quando a sua era apenas promessa) segurando os seus dedinhos miúdos.
Pequenas pessoas que sabiam que essas coisas existiam, mas conformaram-se com o vazio de uma presença que nunca se fez presente.
Um homem desconhecido à quem amaram com a reserva de quem ama um personagem de alguma história que nunca foi a sua.
À essas pessoas que foram privadas - por tragédias, por egoísmo, por neuroses, por problemas de todos os tipos - dessa troca natural e atávica, dessa parte do processo de se tornar adulto pleno, desse membro amputado, sem anestesia, das suas vidas, eu digo: nunca faltaram nem faltarão abraços apertados, beijos carinhosos, declarações de amor e afeto nessas vidas cicatrizadas.
Nunca faltará a certeza de se estar aqui por um motivo supremo, mesmo que nunca tenhamos tido o aval da nossa existência declarado pelos responsáveis por ela, pelos heróis que nos transformaram em complexidade e alma.
Porque somos muito mais do que o resultado de duas pessoas que, outrora, se encontraram.
Somos filhos do único Pai que não nos abandona.
O único que fica em silêncio quando nós o abandonamos.
Mas que nos põe rápido no colo, sorrindo, ao primeiro sinal nosso de desamparo.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Vinho Tinto


Tenho uma profunda admiração pela jornalista Mariana Kalil, pois, além de inteligente e talentosa, ela tem algo que considero imprescindível em um ser humano: senso de humor.
Ela me faz mais feliz com os diálogos engraçados do Bento e da Olívia, com os assuntos pertinentes e o posicionamento leve em relação à densidade do mundo.
No "Por Aí" do dia 3 de agosto, ela abordou um tema que já me tirou muito o sono, ou melhor, já me fez acordar de sobressalto, pela manhã, ao lembrar o número de calorias que ingeri ao me entregar aos prazeres do vinho tinto.
Ela termina a coluna com o Bento dizendo que não se pode ter tudo nessa vida. 
Ele tem razão, mas do vinho tinto não abro mão.
Já passei por todas as fases de negação, inclusive aquela mais humilhante que consta em aumentar cada vez mais o tamanho da taça para enganar à si mesma e acreditar que se está na medida padrão de saúde.
Quando não encontrei mais no supermercado uma taça que coubesse uma garrafa, tomei vergonha na cara e assumi a minha dependência dessa bebida quente, vermelha, encorpada, aveludada como a paixão.
E depois do meu terapeuta garantir que a minha sede é inofensiva - "Ele atrapalha a tua vida? Tu deixa de fazer coisas por causa do vinho? Tu compra compulsivamente? Joga? Fica fora de si? Bate no marido, cachorros, filhos, Calopsitas?" - diante da minha negação às suas perguntas clínicas, relaxei.
E quando relaxei, até passei a beber menos, vejam só. 
Agora, quanto às calorias, sim, me preocupo e procuro beber menos do que gostaria. 
E adoro a lei da compensação. Carboidrato com vinho, à noite, nem pensar. Só em dia de festa e olhe lá.
A vida é curta, todo mundo sabe, então acho bem interessante cada um escrever em um bloquinho as suas prioridades e tratar de olhá-las, de vez em quando, para ser mais feliz.
Ter aqueles dois quilos a mais ou correr 24 quilômetros por semana é melhor ou pior do que parar de beber vinho?
Muito melhor.
É isso aí, Fofo Bento, não se pode ter tudo nessa vida.
Mas do vinho tinto não abro mão.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Aval para sentir


Hoje eu disse que estava cansada e fui incompreendida. 
Porque a pessoa que ouviu o meu desabafo acredita que para se estar cansado é preciso ter escalado o Everest, escrito recentemente um livro vencedor do Pulitzer ou ser presidente da Petrobrás.
E assim é.
Também não se pode ser feliz por merrecas, caso contrário nos olham atravessado, pois feliz é quem ganha milhões, dá a volta ao mundo, é branco, culto, dá palestras internacionais e ainda tem tempo de ser comercial de margarina.
Tampouco a tristeza pode vir assim do nada. Para a opinião pública temos que ter perdido muito, caso contrário é depressão e taca-lhe remédio.
Puxa, fico cansada, triste, feliz, P da vida e não preciso ficar por aí justificando os meus sentimentos ou provando "Sim! Eles são verídicos, acredite, por favor, eu os sinto!"
Eu sinto e ponto.
E não preciso atravessar uma tragédia avassaladora, um Tsunami, para me sentir desanimada, desesperançosa, acabada.
E não preciso ser britador para me sentir demolida pelo cansaço.
Não preciso ganhar na Loto para me sentir muito, mas muito feliz.
Só eu sei o que sinto e, infelizmente (ou felizmente, sabe-se lá), somos solitários nos nossos sentimentos mais profundos.
Cada história traz uma carga e essa carga é responsável pela nossa reação em relação aos acontecimentos cotidianos.
Quem julga é pequeno, pois só enxerga a sua própria história e só aceita o que percebe como normal.
Quem julga, procura diminuir algo que não quer fazer parte, pois fazer parte gera um ônus e ônus é algo que ninguém quer hoje em dia, principalmente afetivo.
O pior é quando se diz o que sente e o outro diz que sente o dobro e ainda justifica com medalhas de honra ao mérito, tentando diminuir o que sabemos existir dentro de nós.
Aí, fica praticamente impossível.
A nossa sensação de solidão apenas aumenta, porém nunca devemos subjugar o que nos passa no coração e na alma. 
O choro é bobo?
Não para nós.
A tristeza é infundada?
Não para nós.
Rimos feito crianças?
Não nos parece, pois cuidar de si é prestar a atenção a cada pedacinho da nossa existência.
E nunca ninguém irá nos compreender como nós mesmos.
Por isso em cada cansaço, alegria, tristeza, euforia não precisamos do aval de ninguém.
É sentir e ponto.
E quem, ao menos, não é capaz de nos ouvir, não é merecedor do que sentimos.
Mais cedo ou mais tarde.


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Temporal de Verão (continuação)


Ele vai embora tão rápido quanto voltou.
Esse temporal.
Mas feito árvore na ventania, não consigo deixar de ver as minhas folhas que revoam no ar, subindo e descendo em uma dança que não provoquei, mas que agora é minha.
Preciso, como o astronauta, sair um pouco da redoma dos feitos cotidianos que nos abafam tanto quanto nos dão conforto.
Então, enquanto o Jornal Nacional fica lá, brigando na tela da televisão, saio para a rua.
Uma rua perfeita para os meus devaneios tão singelos quanto o tamanho da liberdade que todos pensam que tem.
Ali, naqueles metros de lage, contornados pelos vastos bambus do vizinho, acendo um cigarro. Não, não fumo, só os guardo para as emergências essas de se sentir vazia.
As águas azuis da piscina tremulam, feito cada pedacinho das minhas certezas.
Então, eu olho para as estrelas.
E o temporal vira céu estrelado.
E percebo as luzinhas amareladas dos quartos das minhas filhas, que constroem uma bruma delicada de luz nos bambus do vizinho.
E o balançar de todo o verde que cerca o meu pequeno pátio me chama pra perto, para cantar essas canções de brisa nos meus ouvidos.
Ouço todo o movimento frenético da vida lá fora que não pode parar. O motor dos ônibus, as buzinas, os latidos, as freadas, de novo as buzinas.
E volto para o bem mais precioso que tenho.
O reconhecimento do que representa possuir essas luzinhas de quarto de menina acessas na minha casa.
O reconhecimento de ser capaz de ver a beleza de um céu estrelado, de ser capaz de ouvir o vento e de fumar um cigarro só para brigar um pouco com a minha mania de ser saudável.
Com a minha mania de ser tão certa. Quando a vida é tão cheia de certeza de coisa alguma.
Certeza que para cada um é uma.
E o meu temporal novamente me dá uma trégua.
Quando vejo que a minha (certeza) é ter a certeza de que tenho muito quando apenas saio de dentro de casa para ver as estrelas, o vento e as luzinhas tão amadas de cada quarto.
E essa vida que eu queria mesmo se não fosse minha.

Temporal de Verão


Nem sempre é quando as portas se fecham, nem sempre é quando o coração está partido, nem sempre é quando o dia está nublado.
Aquela película fina, mas capaz de tornar tudo o que vejo um  pouco mais cinza se instala, não nas minhas retinas, mas no meu coração.
Talvez seja o excesso de zelo diário com os próprios sentimentos, fazendo-os menos dramáticos na hora de ver tantos dramas derramados pelo mundo. 
Talvez seja o exercício diário de retesar o corpo para que não se curve e fechar um pouco os olhos da alma para que ela não se definhe com cada notícia macabra que chega aos ouvidos e aos olhos. Mesmo quando nas minhas bençãos encontro a força para ainda perceber com prazer cada pequeno movimento da vida em direção à plenitude, à beleza.
Porém, certas vezes não consigo impedir que essa coisa que é não é tristeza, mas é vazio, venha sentar no meu colo e enroscar os seus braços gelados no meu peito.
Então fico com uma ausência de tudo que me caracteriza: o otimismo, as risadas por milhões de bobagens, a energia inesgotável, a facilidade de acreditar no melhor.
Fico oca.
Às vezes, isso acontece depois de uma madrugada insone, onde os meus pensamentos se agigantam e as minhas preocupações ficam sobrevoando o meu corpo inerte, de olhos fitando o teto, como fantasmas em algum filme de terror barato.
Às vezes, acontece depois de eu ver como as pessoas, cada vez mais, se entregam à tudo o que é barato e pequeno, disfarçado de valores inestimáveis.
Outras tantas, quando percebo que apesar de dirigir, comprar, caminhar, pertencer e viver ao lado de tanta gente, me identifico com pouquíssimas.
Fico oca.
E leve. 
Como um astronauta que flutua com a ausência de gravidade, vê a insignificância do planeta e acorda para questões que podem rachar a sua própria cabeça mesmo com a proteção do capacete espacial.
E como temporal de verão, o meu tempo ruim passa.
Mesmo tendo raios brilhando na escuridão de uma noite chuvosa lá fora.