quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Aonde eu quero chegar.


"Aonde você quer chegar com isso, Mônica?"
Era uma pergunta comum da minha mãe quando eu fazia algo que a desagradava.
Eu não queria chegar a lugar algum.
Eu queria simplesmente caminhar, sem necessariamente chegar, trilhar a minha estrada mesmo que ela desgostasse a minha mãe ou o restante do mundo.
Porém, aos doze, quatorze ou dezoito anos, eu engolia em seco e bloqueava os meus passos com medo que eles ocasionassem o sofrimento de quem eu amava, mesmo eles estando muito longe disso.
E é no meu caminho que eu quero estar, sem necessariamente chegar, mesmo sabendo que a gente sempre acaba chegando, mas isso é outra história.
Antes da chegada o mais importante é como percorremos todo o trajeto até ela.
E estou finalmente percorrendo do modo que julgo certo para mim, mas com o cuidado de tentar sempre não esculhambar o caminho do outro.
Mas que não esculhambem o meu, por favor!
Que não venham julgar as minhas escolhas, elas sendo inofensivas ao próximo, mas sendo específicas para mim.
Ouvi certa vez de uma psicóloga, em um período muito turbulento da minha vida, a seguinte pergunta: "O que serve para você?"
Já se passou um bocado de tempo, mas jamais esqueço que eu não consegui responder.
Hoje tenho a lista.
Quase completa, pois vou adicionar e retirar itens amanhã, na próxima hora, segundo ou ano.
Não me serve mais ser o que esperam que eu seja em detrimento do que eu realmente quero ser.
Número um na lista.
Não me serve mais a tolerância absurda com o que me fere, entristece ou rouba a minha alegria.
Os nossos passos, opiniões, verdades e modo de viver não ofendem ninguém exceto àqueles que querem que seus passos, opiniões, verdades e modo de viver sejam dicionário a ser consultado.
Os meus significados são somente meus e se alguém possuir alguns sinônimos serão esses os meus afetos.
Dos outros, peço apenas respeito.
Demorei quase cinquenta anos para elaborar as palavras que me constroem e são elas que fazem o meu caminho ser agradável e autêntico e não pretendo abrir mão disso.
Mesmo quando dizem que estou em uma má fase, pois sei bem o que uma má fase alheia representa no dicionário daquele que julga.
"Aonde você quer chegar com isso, Mônica?"
À todos os lugares que façam a minha felicidade possível, cara mãe.
Mas não se preocupe, jamais vou impedir a sua.

sábado, 26 de setembro de 2015

Vida


Ela cheira a gordura e a suor.
Sai para a rua e senta no meio fio para fumar um cigarro e apaziguar a vontade de matar o marido.
Olha para cima, para o prédio cheio de vidraças e vê uma aberta onde uma homem e uma mulher estão começando a se amar.
Ela traga.
Ele acaricia um seio, ela fecha os olhos.
Lá chove.
O cigarro se apaga, o amor começa enquanto ele recebe a notícia da morte do filho.
Ele já havia morrido mil vezes, mas agora já pode se enterrar enquanto neva onde ela chora pelo emprego perdido e o excesso de peso.
O sol brilha.
Eles perdem a vida ao virar uma curva, ela nasce, abre os olhos para olhos que se enchem de emoção e lágrimas.
Eles assistem à televisão, ele mata e pica quem lhe roubou o ponto de venda enquanto ela debuta vestida de branco e rosa.
A novela acaba e todos suspiram.
Enrolada nas cobertas, em um dia iluminado, ela se recusa a ver o mundo na noite estrelada onde ele dirige vendo o mar em busca da felicidade que é sua.
Ela não tem idade para sentir medo de mãos conhecidas em seu corpo, mas esquece um pouco de respirar naquele quarto pequeno e escuro ao mesmo tempo em que ele prende o ar em um salto que é parte de um sonho de poder voar.
Ele caminha os últimos passos na fome e na miséria, ela caminha os últimos passos depois de tantos excessos.
Ambos tem raiva de tudo que sobrou e faltou, ambos tem tanta falta e tanto excesso.
Ela embala o filho e canta uma canção tão linda na madrugada onde não importam as horas, a mesma madrugada em que ela larga enrolada em mantas rotas uma canção nunca cantada que adormecerá para sempre no frio da noite e do abandono.
No mesmo momento em que ela se culpa por não dar tanto carinho, ele recebe nos braços de outra.
O avião mergulha em um voo cego onde cento e oitenta pessoas jamais verão novamente a cor do céu e onde cento e oitenta baleias rasgam o oceano em busca de paz.
O dia nasce.
Morre.
Ele ama, ela odeia.
Ele mata, ela trabalha para preservar a vida.
A crueldade sangra inocentes.
Inocentes salvam a bondade.
Lições são aprendidas.
Almas restauradas.
Aqui.
Lá.
Tarde.
Cedo.
Nunca jamais.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Capas de Sofás


Em uma noite de chuva, sentada no chão, esperando os cães do cliente tomarem água, depois de muita farra, passei os olhos pela casa, a do chão em que eu estava.
Porque o chão é o melhor lugar para eu estar quando eu quero estar de verdade, principalmente quando quero entrar dentro de mim.
Olhei cada detalhe pensado com carinho, aquele carinho de quem está recomeçando, faxinando o passado, enfeitando e enfeitando-se para refrescar o presente e tentar preparar um futuro diferente.
Então vi o sofá, o mesmo que havia visto algumas vezes, mas como disse é do chão que enxergo e ouço melhor o mundo.
Eu sabia que o sofá era branco, mas algumas amarras no encosto me mostraram que, além de branco, ele tinha uma capa.
Uma capa branca também que o protegia de mãos, pés, esporadicamente patas, pernas, costas e traseiros.
Uma capa que deixava nesgas de um tecido muito mais bonito.
E pensei.
Quem será o merecedor da nudez do sofá?
Quem poderá vê-lo, tocá-lo, sujá-lo e beneficiar-se do seu conforto e da sua real beleza?
Por que deixar para os outros, para depois, para mais tarde, para uma ocasião especial o que consideramos valoroso?
Copos, louças e sofás. 
Comemorações, brindes e alegria.
Nós.
De verdade.
Por que não desfrutamos da segunda e da terça, do sentar macio e do deslizar das mãos em um sofá que é nosso? 
Aquele que olhamos na loja e nos apaixonamos, mas que o escondemos com uma capa para mantê-lo impecável até o momento que outros também permitam que nos deleitemos com a sua imaculada beleza.
E vamos guardando esses pequenos prazeres e grandes sentimentos para quando realmente for importante senti-los.
Ah, nas férias vou beber e comer o que quero, vou gargalhar sem parecer ridículo, vou dormir sem me sentir culpado, vou me permitir sentir a vida que me escapa na rotina dos dias.
Um dia vou dizer tudo o que sinto.
Vou ser esse eu que sou, afinal.
Ninguém aqui está falando de viver uma vida louca, mas de se dar mais, sem medo de que a nossa "sujeira" macule ideias que queremos que os outros tenham sobre nós.
Temos que estourar o espumante mais caro do mundo em uma comemoração à nós mesmos e, de preferência, bebê-lo sozinho.
É preciso chegar em casa, depois de uma dia exaustivo, e deitar no nosso sofá bonito, que escolhemos para ser uma parte também bonita e singela do nosso merecimento.
Não vamos ser o que somos agora, para sempre.
Vamos pisar na bola, crescer, se arrepender, se regojizar, rir, chorar, começar, terminar.
E vamos nos sujar e nos limpar.
E somos muito, mas muito mais únicos e importantes do que um sofá.
Somos parte dessas atitudes que representam tanto do que dizemos pouco.
Essas que fazem com que tenhamos vontade de coisas bonitas.
Mas que também fazem com que ponhamos uma capa, na intenção inútil de as proteger e eternizar.

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Recomeço


Eles tinham algumas fissuras na solidez do amor construído.
Eram mais companheiros no cansaço noturno e na trégua da voracidade do mundo do que mãos dadas em dias de sol.
Eram heróis que se perdiam nas próprias batalhas e esqueciam de lutar por causas esquecidas, mas não menos importantes.
Ela sentia falta daquilo que havia tido, pois não se sente falta do que nunca se possuiu.
Até que foram chamados para longe.
Para contar um pouco sobre a guerra dos outros e explicar o inexplicável para aqueles que faziam sumir as mazelas do mundo com um simples botão de desligar.
E lá longe, no meio da morte, da dor e da esperança, ela viu certos olhos em uma multidão de olhos cerrados.
Olhos de luz.
Uma luz que reacendeu a dela.
Que preencheu um vazio escuro que ela carregava no peito e que ela esquecera de quanto doía.
E os quis para ela.
Os olhos e o homem.
O homem que rasgava a própria pele para vesti-la nos que morriam da dor da tristeza.
Um homem que, um dia, em uma noite qualquer daquela guerra lhe amou com suavidade e lágrimas.
E ela entendeu.
Jamais poderia viver sem seu amor.
Aquele que fez dela outra e a fez querer começar tudo de novo.
Eles tinham algumas fissuras na solidez do amor construído.
E estando perdidos no meio dos mortos, descobriram o caminho para se reencontrar como dois.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Gaivotas, Cães e Bebês


Não posso deixar de doer perante a foto de um bebê inerte, consumido pela injustiça e a morte.
Cresci sentindo toda a dor do mundo e não, não pedi ou quis que fosse assim.
Meus rasgos na alma começaram quando percebi que existia uma maldade e uma injustiça que eu ainda não compreendia, assim como não compreendo até hoje, mas as engulo como engoliria uma faca.
Apreendi a aspereza do existir ao caminhar na beira de uma praia deserta e assistir a cenas cruas de terror.
Meninas não deveriam ver adolescentes depenando gaivotas vivas e não deveriam pedir que parassem.
Não deveriam ver olhos injetados de raiva ao lhe olhar com escárnio e prazer.
Ou ver a corrida desesperadora da ave em direção ao mar, na trégua que durou pouco.
Nesse momento criei o meu profundo vínculo com aqueles que não são capazes de se defender das atrocidades do mundo.
Na minha dor, revolta e falta de coragem em intervir, morri e renasci dura e intolerante à feiura do ser humano.
Meninas não deveriam se jogar no chão e se esconder ao ver um homem matar com uma pedra um pequeno cãozinho, pelo simples fato de ele estar lhe seguindo.
Ali, morri de novo.
Morri, nasci, endureci, percebi, me rasguei, me costurei e fiquei cheia de cicatrizes em apenas um verão. 
Um verão violento.
Que eu não pedi.
Mas estava escrito para mim.
Encho os meu olhos de lágrimas até hoje ao lembrar destes dois episódios daquele verão.
Já acordei no meio de muitas noites pensando na culpa pelo meu silêncio e medo.
Essa culpa que não é apenas pela gaivota ou pelo cão, mas por esse todo de bebês afogados e ingenuidades mutiladas que passam a ser minhas no momento que existem e se tornam possíveis.
Transformei o meu choro eterno e sem consolo em dentes agudos e mãos imensas na defesa e no acolhimento daqueles que sei indefesos.
Consigo ainda ficar de pé, através de uma cegueira pertinente que venda os meus olhos e fortifica as minhas pernas.
E me rasgo todos os dias.
Para consertar depois, na fé de que existe os rasgos e as costuras. 
Existe o feio e o bonito.
A queda e o voo.
Nunca sou plenamente feliz, pois sei o tamanho da infelicidade que existe.
Tenho tudo, tenho muito.
Sou inteira e olho sempre para a luz.
Apesar do buraco escuro que se esconde dentro de algum lugar qualquer dentro de mim.
Esse lugar onde moram gaivotas, cães e bebês.