domingo, 26 de fevereiro de 2012

Mudanças



Estamos bem. Apenas alguma coisinha lá no fundo dói, como uma mínima lesão muscular, que só é sentida com o esforço de certos movimentos. Ela não impede nossa vida, mas volta e meia pensamos o que poderia ter provocado o pequeno dano. E protelamos uma averiguação mais profunda, pois a vida está boa, afinal. Mas começamos, aos poucos, a mudar de posição, alterar nosso movimento, evitar esforços para não darmos de cara com o desconforto escondido. Talvez, se não falarmos, se desconsiderarmos, se evitarmos, a dorzinha vai embora e com ela aquele monte de perguntas a respeito de quando e porque ela começou. E se aumentar? E se doer mais? E se tivermos que mudar hábitos, encerrar vícios, se despedir de coisas que, apesar de nos machucar, nos habituamos a gostar? E vamos levando. E a dor ou as dores que deveriam ter sido tratadas aumentam e quando vemos, estamos impossibilitados de, sequer, dar mais um passo. Então nos desesperamos, chutamos baldes, choramos, nos descabelamos. Como foi que tudo chegou a esse ponto? Por que a vida é assim? Pois é, agora já não adiantam mais pequenas mudanças, tratamentos leves. Agora vamos arrancar à faca o que incomoda, em meio à lamúrias de indignação. Todos serão culpados e o que era apenas para ser remediado, será remexido, extirpado. Pelo menos, depois que a tempestade passar, aprenderemos a considerar cada desconforto, por menor que ele pareça, pois temos que aprender a cuidar de nós mesmos com carinho, prestando atenção em cada pequena dorzinha que nos impede de ser plenamente feliz.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Ela

Esperança. Ela pode vir de diversas formas. Para alguns, ela espia através da alta do leito de hospital, do exame bom, do fôlego para atravessar ruas e cidades correndo. Ela sorri na promessa de um emprego, no aumento de um salário, na valorização de um trabalho suado. A esperança mora no pedido de desculpas, no arrependimento e até na lágrima. Ela toma forma de carinho quando nos acariciam fora de hora. Vive nos olhos vivos de quem já viu a morte passar por perto e no coração de quem pegou no colo uma alma condenada a partir.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Floresta

Tenho uma mata de árvores plantadas dentro de mim. Elas que me dão sombra, frescor, frutos que me alimentam quando estou passeando pela minha floresta de sonhos. Já vi suas folhas tremeluzirem em amanheceres serenos, se encharcarem em tempestades de estrelas e se colorirem de todas as cores. Tenho também histórias, onde sou escritora e personagem, muitas encerradas, algumas inacabadas, várias comédias, muitos dramas, mas todos escritos para finais felizes. E quando passeio demais pela terra e finco demais meus pés na areia, acreditando apenas no que meus olhos vêem, volto a abraçar cada tronco denso que em mim habita, folheio cada página dos meus livros cheios de passado e futuro e devolvo à mim o que me falta: eu mesma.


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Premiada

Sou especialista em desenvolvimento humano, pois criei duas filhas.Sou executiva do ramo doméstico, pois o que executo, todos os dias, não é brincadeira. Sou boa administradora, pois administro um zoológico em casa. Sou graduada em corte de grama e poda, psicologia adolescente, manutenção e prevenção de gritos e brigas entre irmãs e, de quebra, tenho uma bela medalha de honra ao mérito por estar ha mais de vinte anos casada.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Outra

Quero que saibas que não sou perfeita. Que tenho ciúmes quando falas de outras mulheres, talvez melhores. Não sou perfeita por não possuir os mesmos sonhos, as mesmas ambições, a mesma força. Sou diferente de ti em muitas coisas, pois não quero ver minha imagem refletida nos teus olhos, mas quero ver tua própria luz quando te admiro. Sou um monte de coisas e elas são boas e ruins, pois a minha história não é a tua e a minha alma tem marcas que foram feitas antes de existirmos como dois. Quero que saibas que quando eu estiver perfeita, sendo o tudo que sonhastes para ti, encaixada em cada desejo teu, na medida certa das tuas expectativas, nesta hora não serei mais eu. E, podes saber, esta outra não te amará mais.

Felicidade

A felicidade sempre esteve caminhando pela minha casa, sentada no meu sofá me olhando enquanto sorrio sabendo de sua existência. Mas olho pra ela de canto de olho, pois sei que se exagero sua presença, ela, como ser fugidio e assustado, sai de fininho pela porta. Ela sopra nos meus ouvidos coisas bonitas de se ouvir, mesmo quando ando ouvindo algumas coisas que me entristecem. Porém, conheço a danada desde pequena e sei que ela nunca vem toda, inteira, completa. Ela vem ora cabeça, ora pernas, ora mãos que me salvam de algum precipício. Ela vem abraço invisível, mas pode estar abraçando só uma parte da gente, por ela mesma ser dividida também. Ela me ensinou a respeitar e amar cada parte, pois sei que se eu desejar que ela apareça toda de uma vez, vou ficar esperando para sempre e ela nunca  mais vai aparecer. Ela vem amor, mas não paixão, depois paixão, mas não amor. Vem saúde e bolso vazio e depois pode vir bolso cheio para mostrar que ela também pode ser vaidosa, de vez em quando.Vem diversão, trabalho, filho, casamento, namorado. Mas, às vezes, essas coisas todas aparecem sozinhas e a gente se pergunta cadê a felicidade que deveria estar ali, presa à elas. A gente procura e não acha e perde a esperança. Ai, a coitada que estava um pouco escondida, tentando nos fazer entender como ela pode fazer falta, mesmo que fracionada, fica chateada e até ela mesma se entristece. Bom, aí não tem prêmio de loteria que faça ela perder o medo de aparecer novamente, mesmo que, no começo, a gente se engane e pense que euforia é o mesmo que felicidade. A gente vai ter que sentar e pensar quando foi que deixamos ela pra trás, quando foi que desvalorizamos cada pedaço dela, quando foi que a trocamos por sentimentos rasos e rápidos, logo ela que odeia eles. Vai demorar, eu garanto, mas quando ela voltar a gente nunca mais vai querer, por bobagem, deixar que ela, de novo, fuja da nossa vida. Ai, a gente vai sorrir com ela sentadinha no sofá, suave, sem explosões nem alarde e vai fazer uma coisa que ela gosta muito que se faça: chorar de felicidade.