segunda-feira, 28 de março de 2016

A imprevisibilidade da vida


Eu tenho um psiquiatra que vejo duas vezes ao mês.
Já fazem uns dois anos, mais ou menos, e todas as vezes que vou lá, de uma forma ou de outra, ele me faz pensar em planos para o futuro.
Ou melhor, me faz enxergar o quão desleixada sou em não planejar os dias subsequentes da minha vida.
Sempre saio de lá com uma pulga atrás da orelha e as outras pulgas ficam por lá, mortinhas, prontas para serem varridas.
Essa que fica perto do meu ouvido, se mexendo e sussurrando é justamente a que me faz ver que nunca fui de fazer planos.
Até planejo as próximas horas, mas muito pouco os próximos dias e inexistem os planos dedicados aos anos.
Simplesmente aprendi que as coisas mudam a todo instante e a imprevisibilidade do existir torna inviáveis as metas a longo prazo. 
Claro, posso fazer uma faculdade com a intenção de me tornar uma profissional em determinada área, posso começar um trabalho, comprar passagens aéreas antecipando uma viagem e muitas outras coisas, mas mesmo essas possibilidades podem, com o passar do tempo, trazer variáveis que mudarão o percurso da história.
Só o diploma, só a efetivação no trabalho e só os pés pisando o carpete do avião serão a garantia de planos concretizados.
Tudo muda drasticamente a todo instante e as pequenas mudanças podem nos passar imperceptíveis como as marolas, assim como as grandes mudanças são como ondas gigantes.
Na última consulta mostrei na prática a minha teoria.
"Não adianta, tudo pode mudar, uma solução pode virar problema, um problema pode virar solução." - disse eu, sentada na poltrona de frente para ele.
"Me dê um exemplo."- disse ele, olhos semi cerrados na expectativa de alguma bobagem.
"Pois bem. Eu peguei um filhote de cachorro que estava morrendo na rua. Tenho seis, como você bem sabe, mas eu não poderia deixá-lo lá, como você bem sabe. Ele virou um pepino enorme, meus cães brigando, minha dúvida se ele sobreviveria, meu coração apertado por amparar mais um, gastos, enfim, uma dor de cabeça peluda, carente, fragilizada e linda. Tive semanas de insônia, crises de taquicardia, preocupações e trabalho sem fim. Eu ficava de joelhos, rezando e pedindo que alguma alma caridosa o adotasse ou, no mínimo, me ajudasse de qualquer forma (e tiveram várias formas e uma única ajuda). Ofereci o pobre bebê até enquanto corria na rua, na internet, para os amigos, vizinhos, o Papa. Eu queria alguém de confiança. Nada. O tempo passou, assim com a fase difícil e ele se tornou um afeto maravilhoso para toda a família. Então, surgiu um belo adotante e prometi entregá-lo depois de castrado, porém a castração teria que esperar a maturidade do cãozinho que já tinha nome. O adotante ansioso, ligava todos os dias. Nós, ansiosos já não sabíamos mais se queríamos nos livrar do pepino que virou Yoda. Então, novamente o tempo passou (é incrível esse tempo) e o adotante virou meu pepino, pois eu teria que voltar atrás com a minha palavra. Minhas orações se voltaram para que o bom rapaz desistisse do bom cachorro. A minha solução se tornou o meu problema e o meu problema se fez membro da minha grande família."
"Concordo plenamente." - disse ele.
E aquela pulga, aquela que sugava os meus dias, atrás da minha orelha, caiu morta no chão do consultório.
Penso que será varrida como todas as outras.
Até que a imprevisibilidade da vida me traga novos problemas que virarão solução e novas soluções que virarão problemas.
Até que, cheia de rugas nos rosto, eu me mate de rir de todas as vezes que nós, simples mortais, tentamos passar a perna no que está escrito para nós.

terça-feira, 15 de março de 2016

Ansiedade


O despertar vem forçado pelos latidos nervosos, repetitivos e altos dos cães do vizinho.
Apesar de já habitar a minha mente o reverberar dos pneus dos carros que descem a rua muito mais velozes do que seria permitido, na pressa neurótica de fazer quase tudo que não é necessário.
Meu coração já havia iniciado aos poucos os solavancos já familiares bem antes de eu abrir os olhos, mas agora retumba furioso com batidas tão desconfortáveis quanto inúteis.
Eu não preciso dessa velocidade toda do meu sangue, assim como os carros não precisam voar nos paralelepípedos e ameaçar os gatos.
Tento acalmar o meu bombear desobediente lembrando de um quarto na beira do mar.
Onde dormia uma pessoa diferente da que me tornei, nem melhor, nem pior, apenas uma que tinha um quadro com coqueiros fincados nas areias brancas bem em frente à sua cama.
Lembrando do som suave das ondas no início de uma manhã que abrigaria gritinhos de crianças e buzinas de carrinhos de picolé.
E com o mar jorrando o seu sossego nos meus ouvidos no início de uma noite de sonhos, consigo tum...tum...conversar com esse meu coração sobre a insensatez em querer bancar Deus.
Na viagem à ingenuidade daquela pessoa diferente, porém igual, prescruto cada vestígio dela em mim para tentar arrancar a coragem de ser dona do seu próprio pulsar.
Para ordenar os pensamentos como criança bronzeada que não espera muito mais do que os pés enterrados nas areias da praia.
Não espera muito mais do que um Chicabom derretendo na boca, mesmo sabendo que o chocolate gelado e cremoso irá desaparecer tão rápido quanto os dias de sal nos cabelos.
Não tenho ouvido o mar há mais tempo do que eu gostaria.
E ele sempre fez mais bem aos meus olhos e ouvidos do que à minha pele.
Muda de tom, de humor, de tamanho.
É dele a força para se lançar à terra, mas não são dele as chuvas e os temporais, nem os dias ensolarados que o fazem brilhar.
Ele apenas existe...tum...tum...e jorra.
E só Deus pode fazer ele parar.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Muito prazer, sou um texto inacabado.

O meu jardineiro é meu amigo antes de ser meu jardineiro.
Pessoa rara em honestidade, caráter, bondade.
O conheço há quatorze anos, quando jardinando a casa que seria minha, abriu as portas para mostrar cada cômodo desocupado dos vários que guardariam os meus passos, o meu corpo, as minhas alegrias, as minhas lágrimas, os meus amores, a minha vida.
Na última visita rompeu em lágrimas e me surpreendeu.
Olhou nos meu olhos e disse que tinha vivenciado a coisa mais triste da sua vida. Vida dura eu bem sei, com começo árduo tendo apenas a roupa do corpo e a esperança guardada no bolso.
Sempre sorridente e alegre, pela primeira vez vi o seu rosto se contorcer em tristeza e os lábios virarem para baixo ao dizer que tinha perdido o seu melhor amigo, que tinha visto ele bater as asas em espasmos e deixar para sempre o corpinho verde de papagaio.
Era o filho que nunca teve, era a dor simples e banal para tantos, mas profunda e dilacerante para ele.
A dor dele, a minha, a nossa que será desigual sempre, mas jamais menos significante.
Um bicho, um amor, uma conquista, um degrau que some e fica para trás depois de nos deixar pasmos na relutância em aceitar que temos que enfrentar todos os dias a mutilação pequena ou grande da nossa alma. A regeneração grande ou pequena da nossa alma.
E que vamos ter que caminhar com pedaços a menos e rugas a mais. Com pedaços a mais e insônias a menos. Com uma forma diferente de existir depois das perdas, uma forma lapidada na consciência da brevidade dos momentos felizes ou tristes e da necessidade de construir lembranças, saudades, pontes, aprendizado.
Vestimos o coração com as pessoas, os afetos, o conforto, as alegrias que nos fizeram e nos fazem Brunas, Andréas, Fábios, Renatas, Carlos, mas o tempo de se reinventar sempre chega.
E ele pode demorar dois ou trinta anos, mas vamos ter que lidar com o fato de que tudo muda a todo o instante e nas dores e regojizos vamos colocando letras no nosso pequeno alfabeto, vamos colocando significados e sentido no que somos e, no final das contas, vamos saber que seremos bem mais do que nossos simples nomes.
Como um carro com um extenso e infindável reboque que carrega coisas com letras maiúsculas e minúsculas, palavras que nos fazem sentir dor, que nos enchem de prazer e felicidade e que ficam para sempre atreladas à nós.
Papagaio, parto, separação, cão, gato, demissão, viagem, casamento, amizade, começo, fim, meio.
Com cicatrizes visíveis ou não, com alegrias plenas ou partidas, com sonhos feitos e desfeitos, traumas, boas e excelentes lembranças, passado, presente, futuro.
Prazer, sou a Mônica, mas muito mais do que você possa sequer imaginar, saber ou conhecer, pois sou várias letras com diferentes significados.
E amanhã irei renascer.