sábado, 28 de fevereiro de 2015

Dois Travesseiros


Não existe, para mim, algo mais íntimo do que dormir com o homem que se ama.
No ato de dormir, anulamos todas as resistências conscientes ou não e entregamos a nossa alma ao sonho.
Nos desprotegemos de tudo fechando os olhos, diminuindo a intensidade do respirar, relaxando o corpo.
Lembro da primeira vez que dormi com um homem que amava e, por incrível que possa parecer, é o mesmo que divido os lençóis até hoje.
Me senti vulnerável, insegura, fragilizada com a ideia de poder ser observada enquanto mergulhava no meu inconsciente.
Não preciso dizer que não preguei o olho a noite inteira.
Já éramos íntimos, porém a intimidade de lavar o rosto, apagar a luz, encostar o corpo e dividir o ressonar me pareceu íntima demais.
Dormir junto é derrubar o último muro da individualidade, é entregar certos segredos, é virar um casal.
Se de uma noite, várias ou a eternidade, não interessa, o deitar de corpos para o descanso é uma aliança mais bonita do que a de metal.
No decorrer da vida cansamos de dormir com amigas, amigos (no chão de uma sala qualquer ou em alguma excursão escolar), casos, aventuras, derrapagens em noites regadas à sol e bebidas, porém quando o amor vem de pijamas, o vínculo se torna outro.
O braço que permanece em volta da cintura, inerte, pesado, mas necessário.
A perna que se enrosca mostrando carinho, a mão na mão.
Mãos que nos tapam do frio desprotegido no torpor do sono.
Naquela primeira noite não dormi.
Quando passei a me permitir sonhar em conjunto descobri que a melhor forma de viver é se entregar.
Mesmo com medo, mesmo que não dê certo, mesmo que acabe e nos machuque.
Toda a forma de entrega é uma semente que será sempre nossa.
E irá sempre brotar em forma de lembrança.
A cada despertar.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Nosso voo é sem capa.


Entrando no clube para bater uma bolinha, me deparei com a seguinte cena familiar: a mãe e seus dois filhos pequenos, uma menina por volta dos dois anos e um menino com seus cinco.
A pequena moça empunhava um carrinho de bonecas onde um coelho de pano jazia confortável e bem coberto por uma colcha cor de rosa. 
Diminuí o passo para poder degustar aquele protótipo de ser humano, ajeitando a cobertinha, olhando com devoção para seu objeto de amor: o filho orelhudo.
O protótipo de ser humano versão homem já corria à frente, chutando a bola que lhe servia, era sua escrava no ato de rolar e quicar provendo a sua diversão exclusiva.
Essa cena explica muito sobre os homens e mulheres deste planeta.
Ela, brincando para aprender à se doar, ele, brincando para aprender à se doar prazer.
Vou arrumar alguns desafetos masculinos por aqui, mas vou adiante.
O homem jamais sai da fase de tentar, exaustivamente, se proporcionar coisas boas, mesmo com intervalos para brincar de se ser pai, chefe, empregado, amante e melhor amigo de outro que carregue os XY em seus cromossomos.
A mulher nasce para amparar, aconchegar, confortar, receber as dores, servir aos sentimentos.
A mulher guarda o filho, o sexo do homem, o alimento da cria, tudo dentro de si.
Ela guarda imensos segredos e o maior de todos é conhecer os segredos dos outros que ama, mesmo fingindo os desconhecer.
Somos hábeis na arte de dissimular o peso imenso que carregamos nos ombros.
Somos hábeis em mentiras que salvam e omissões que restauram.
Mestres em panos quentes, colo, choros suprimidos e decepções usadas como remédio para nos fortificar.
Não chutamos, tampouco socamos, pois a nossa força não é medida na capacidade de se impor, mas reside na grandiosidade da espera, da aceitação do tempo e da habilidade de se consertar. 
Na maioria das vezes sozinha.
Quase não existem mulheres assassinas em série, violentas, abusadoras sexuais, traficantes e toda a gama de barbáries existentes por aí.
E quando elas fazem parte desse quadro de miséria e horror, choca, arrepia, surpreende.
Nosso sexo não cresce em uma ultrapassagem agressiva.
Não nos sentimos potentes pilotando um monte de aço, fazendo número ao invés de sexo, exibindo parceiros esbeltos, jovens e sarados. 
O nosso poder vem do simples prazer de sentir prazer com nada muito complicado.
Mesmo eles sempre afirmando o quão complicadas somos.
Eles não sabem de nada.
E se tiver amor, então, mesmo sem capa e sem voar, podemos até salvar o mundo.
E nem precisamos, depois, receber os méritos ou virarmos filme.
Apenas um beijo.
Uma mão nos cabelos.
Um cheiro no pescoço.
Ou simplesmente dedos entrelaçados nos nossos, no reconhecimento de que, afinal, também podemos ter colo.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O Cavalo


Temos a tendência a nos acostumarmos às coisas.
O pão do café da manhã, quase sempre o mesmo.
O supermercado onde fazemos as compras.
O sabonete, o shampoo.
A hora de se pesar, de acordar, de se olhar no espelho e reclamar da imagem que nunca satisfaz.
A necessidade de proteção, por mais ilusória que ela seja, aos perigos inerentes de viver se esconde em cada pedacinho de rotina, de hábitos incrustados nos deveres diários que nos trazem conforto e felicidade, porém a felicidade pode andar bastante longe do conforto, por mais incrível que isso possa parecer.
Por isso as viagens são a glória da alma.
Pelo simples fato de nos descobrirmos no desconhecido, renovarmos a cor das nossas pupilas no desvendar do novo.
E somos cavalos domados pelo medo.
Medo de tanta coisa, quando a principal e certa é aquela que pertence à todos.
E quase nunca o que nos salva é aquilo que pensávamos ser o herói de nossa história.
Pois fomos domados com relho, a maioria de nós, acreditando que o dever de existir vem carregado de milhões de culpas e, portanto, a subserviência às coisas, pessoas, valores e temores é a solução.
Ontem eu passeava por uma praça perdida nos confins da zona sul. 
De repente avistei um cavalo.
"Que tranquilo", pensei ao ver o imenso volume marrom, de cabeça baixa, corpo inerte em pleno sol escaladante de verão.
Entre os bancos que ladeavam a quadra de futebol, ele era um quadro sem moldura, complementado pelos verdes e o azul do céu.
Um animal pomposo desfrutando do prazer de estar ali, como eu.
Cheguei mais perto.
A corda que o prendia tinha se emaranhado no banco e ele, preso, esperava que o seu salvador o buscasse. Aquele que o havia amarrado à tela da quadra e o esquecido ao ponto de não perceber as tantas voltas que ele havia dado.
Ou talvez ele, o cavalo, estivesse apenas aguentado a penitência das cordas e de tudo que elas representam quando não se tem mãos, inteligência ou tesouras à frente.
Não tive dúvidas.
Mesmo com o risco de levar uma patada fui, devagar, desfazer os nós da corda.
Ele não me olhou em nenhum momento.
Somente quando se viu mais solto, virou o pescoço forte e colocou os olhos negros dentro dos meus, saindo para a sombra e o pasto.
Ele esperava o dono.
Eu, passeava na praça.
Naquela praça quase nunca vou.
Acho que também sou um bicho esperando a salvação, a redenção e a felicidade.
Somos.
Eu e ele.
Mas agora ele também sabe que a mão que desata o nó pode ser a mais inusitada possível e, quase sempre, não é a que esperamos.
Eu já sabia.
Mas me lembrei de novo.
Graças à ele.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Cartão Postal


Um acontecimento no ano de 2005 agarrou a minha alma na mão e acrescentou uma curva na massa modelável que sou.
Na Isla Negra conheci a casa de Pablo Neruda.
Junto com o ar salitrado e vivo do mar, aspirei, já na entrada, os olfatos daqueles que deixam suas marcas profundas no mundo.
Incorporei Pablo dentro de cada peça de uma casa que guarda impressões tão vivas como as ondas que quebravam lá fora, rugindo, na homenagem eterna à um gênio no talhar do espírito através das palavras.
Por que tudo isso agora? Depois de tanto tempo?
Porque meu trabalho permite ver a delicadeza (nem sempre) do existir no interior do aconchego (nem sempre) das casas.
Caminhando com os cães que cuido, dia e noite, meus olhos prescrutam interiores de janelas e vidas, na intimidade do descanso ou trabalho diário.
Sou ferozmente curiosa e ávida por tudo que se relaciona aos mistérios da existência, então, me perdoem, olho com força.
E vejo muito de tudo que prometi que não teria, à partir de 2005.
Prometi que não teria muita coisa diferente do que vi em cada ambiente enfeitado com esculturas de sereias, mesas enormes para receber os amigos, janelas de vidro para o filme do céu, adegas com espaços para a alegria, retratos e quadros de cor, na casa de um homem que não nasceu para o comum. Um homem que fez da brevidade dessa viagem um voo magnifico que foi feito com o esforço de quem sabe ser o único.
E lindo.
Não por capricho, mas pela consciência de que ele é finito, mas deve ser bonito.
O que vejo nesses mergulhos na vida alheia é apatia.
Novela, rostos iluminados pelas telas, elas, de todo os tipos.
Vejo bocas mastigando sem prazer, olhos olhando sem foco.
Casas impecáveis sem calor, sem pessoas em volta das mesas, sem brindes por trás das fotografias posadas para serem perfeitas.
Também sou testemunha de mãos que podam galhos pelo simples prazer de vê-los podados.
De pequenos detalhes que me mostram que nem todos sucumbiram à triste banalidade de simplesmente se dar bem na vida como sinônimo de ter muito dinheiro.
Dinheiro é bom, necessário, com certeza.
Mas troco Paris pelo meu quintal se nele eu puder ver poesia.
Pois a vida não é um cartão postal.
Mas cada letrinha que escrevemos no verso de todas a belas imagens que temos.
Fazendo delas mais do que imagens.
Lembranças.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Mulher Fácil


Não me venha com uma mansão branca, de escadarias de mármore e obras de artistas ilustres nas paredes imaculadas se não poderei brincar com minhas crianças e trazer os pés sujos de vida para dentro de casa.
Não preciso de um jardim repleto de sebes esculpidas com bustos de mulheres se eu não poder gargalhar alto e, desajeitada, amassar algumas folhas do verde intenso e reto.
Se eu tiver apenas uma flor plantada no meu vaso de barro, mas ela for minha alegria diurna que não me será arrancada com palavras de cólera nas noites sem lua, deixo, com gosto, a fartura das plantas que tanto amo.
Coloco pedrinhas em um cantinho de mato, se elas forem testemunha do meu sono tranquilo, sem mágoas ou remorsos.
Não me venha com luxos diversos se eles me forem dados depois de muito ter sido tirado.
Não sou fácil de ser agradada se os agrados vierem em forma de coisas que não toquem a minha alma.
E minha alma é bicho arredio às trocas mundanas, às gaiolas banhadas em ouro e prazeres que durem apenas o tempo que o corpo necessita.
Troco todos os meus bens por um colo de braços apertados, pois serei capaz de mover montanhas se me alimentar de carinho.
Pois sou uma mulher muito fácil.
Me rendo muito rápido à tudo que faça os cantos da minha boca virarem para cima em sorrisos verdadeiros.
Não me venha com promessas de viagens encantadas se elas me custarem muito.
Sou capaz de viajar ao deitar no chão e ver o movimento suave das nuvens brancas em céu azulado.
Troco tudo por paz.
E se não puderes me dar apenas isso.
Ficarei bem.
Pois já tenho tudo que me dá serenidade guardado comigo.
Só te peço que não tentes, ao sair, levá-las contigo.