segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Deixe-me entrar.


Foi em uma tarde quente de verão.
Quando ele, verdadeiramente, quis entendê-la.
Ele escondia todas as coisas sentidas e não ditas em um copo cheio de gelo e vodka.
Deitado na espreguiçadeira, no pátio modesto, depois de ter cortado a grama e podado as camélias.
Depois de ter chorado um pouco por conta de goles dados e beijos recusados.
O sol brincava com os cubos de gelo, assim como os seus olhos e dedos.
Então, os mesmos olhos voaram do copo e pousaram no tecido.
Que tremulava florido, feito bandeira de flores, no varal. 
O vestido dela. O seu preferido.
Na dança fluida dos panos ele viu ela dançando no tempo que tinha ficado para trás.
Sentiu seu perfume, seus anseios, suas dores, suas batalhas e vitórias, seu corpo esguio, mas forte, seu seio pequeno encostado na curva do seu braço.
Ela que era dele, mas que era dela mesma antes deles existirem como dois.
Ela que ele só via no descanso das noites e dos finais de semana.
Ela que gostava de flores na casa e nas roupas, mas que poderia gostar de tantas outras coisas que ele não sabia.
Que era uma mulher diferente para o frentista do posto de gasolina, para o colega de trabalho, para a manicure, para as amigas e para os homens que a desejassem.
Era tudo dela que ele via balançar com a brisa, na intimidade de um vestido secando ao sol.
Na intimidade de estar ali tão perto e tão longe, tão dentro e tão fora mesmo estando sempre ao lado.
Porque ele havia se acostumado a tê-la, mesmo sabendo que nunca se tem ninguém.
E foi naquela tarde quente de verão.
Que ele chorou mais um pouco e recolheu as roupas do varal.
Encheu um vaso com flores, lavou o corpo com sabonete de limão.
Alimentou o gato, preparou o jantar.
E a beijou como quem beija uma borboleta que está prestes a voar.
E pediu para entrar.


sábado, 28 de novembro de 2015

O valor do silêncio


Nuca fui uma pessoa que consegue se expressar bem, falando.
Gaguejo, me atrapalho, digo o que não gostaria de dizer, deixo de dizer o que estava pronto para ser dito.
Falo para quem não deveria, deixo de falar para quem eu gostaria.
Por isso encontro na escrita um refúgio, uma ordenação dos meus sentimentos.
Não me considero escritora, me considero alguém que no ausência da fala encontra as palavras certas.
Ao menos as minhas.
E amo o silêncio.
E ele deveria ser muito mais valorizado do que é.
As pessoas estão acostumadas com a poluição de sons e tem uma concepção errada em relação à beleza da ausência dos mesmos. Confundem com solidão e tristeza.
Para estar alegre tem que gritar, gargalhar, grunhir, soltar rojão.
Nem sempre.
Os sons são, muitas vezes, enganosos.
A necessidade de ter a última palavra, de retrucar, de revidar é uma necessidade imatura e vazia, o silenciar é a forma mais nobre de repudiar o ódio e o verdadeiro bem geralmente é feito sem alarde.
Quem fala muito engana a consciência, distraí a razão, ludibria a lucidez.
Quem precisa mostrar satisfação e descontentamento através dos próprios sons são atrizes pornô, bebês e animais selvagens, o resto é demonstração exagerada de sentimentos superficiais.
Com exceções.
Falar demais de si, dos outros, dos problemas, das soluções não nos faz melhores, os outros piores e os problemas solúveis.
Falar demais nos torna chatos, compulsivos e insanos.
As palavras ditas nem sempre saem do coração.
A raiva expelida através da fala machuca e estraga.
Discursos são sempre chatos. Os políticos nem menciono.
Somos humanos e usamos da fala para nos relacionarmos socialmente, mas penso que ela tem se tornado uma forma de justificarmos as nossas atitudes erradas.
Uma forma de existir diferente da que realmente existimos.
Um tapa buraco de erros.
"Oi, tudo bem?" é um exemplo. 
Ninguém realmente nos pergunta isso querendo uma resposta.
Fazemos da fala um escudo para os sentimentos quando ela deveria ser a manifestações real dos mesmos.
Reservamos as nossas palavras autênticas à quem amamos e abrimos o nosso coração conversando apenas com quem selecionamos, o resto é falastronismo.
Por isso consigo ouvir melhor o silêncio.
De um olhar, de um sorriso verdadeiro, de um postura de ombros, de uma inclinação de cabeça de um mexer nos cabelos.
Do quebrar de ondas, do trinar de pássaros, do farfalhar de árvores e de todos esses sons que não foram inventados por nós.
E se a fala é necessária para viver e se relacionar, o silêncio é necessário para respirar.
Não para sempre, mas o tempo necessário para restaurar a paz que anda arredia e fugidia para a maioria das almas, principalmente as que falam demais.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Não desista de tentar ser feliz.


Este ano, o primeiro da minha vida, tive o ímpeto de não colocar árvore de Natal, tampouco luzes e Papai Noel.
Comecei a ver as casas se colorirem de vermelho, verde e dourado e, pela primeira vez na vida, o meu coração não se aqueceu.
Muita tristeza no mundo, muita noticia ruim brotando como Alamandas no verão.
Dinheiro curto, tragédias longas, falta de compaixão e boa vontade, lamas, mortes, queimadas.
Mil chicotes açoitando a minha alma que é sensível como pele de bebê.
Sempre fui muito amiga da melancolia desde a mais tenra idade e toda a dor e beleza de nascer e existir andam de mãos dadas ao meu lado, essas minhas companheiras de vida que insistem em brilhar na mesma intensidade.
Porém, o mundo, vez ou outra, me provoca e me enfrenta na tentativa de fazer eu só enxergar o que a dor é capaz de permitir.
Mas brigo, luto e nunca desisto de acreditar que tudo pode ser bom, tudo pode melhorar e ter um final feliz.
Esse mundo me foi dado e ponto final.
Vou ficar velha e morrer ou simplesmente morrer e a maneira como vivo é o que importa.
E viver, mesmo com todo o caos que isso representa, é tentar construir um mundo dentro desse mundo, um lugar que nos acolha, nos faça feliz, nos preserve, nos alimente e nos dê forças para cavar a dignidade e a coragem de ver o bonito e o bom.
Porque é muito mais fácil destruir do que construir e as portas largas e fáceis de abrir nem sempre descortinarão os cenários mais deslumbrantes.
Mergulhar na profundidade do oceano e desfrutar da sua mágica requer preparo, resistência, calma e boa vontade, assim como navegar ao vento, saltar no céu, surfar no mar.
Para ver a dor basta olhar.
Para ver a beleza é preciso se abrir, se entregar, se dedicar.
Então, enchi de luzes a minha casa.
Bolas coloridas de vidro, renas, Papai Noel e presépio.
Vou fabricar a minha felicidade e este é um direito que tenho.
Que temos.
Me senti feliz, apesar da infelicidade do mundo.
E no outro dia, aquela companheira que faz eu ver o lado bom da vida, empolgada com a minha alegria, me cutucou e apontou para debaixo de um viaduto, ali mesmo perto da rodoviária.
Fui ver o que ela tanto queria me mostrar e enchi os meus olhos de lágrimas.
O papeleiro enchia de luzinhas o caixote que lhe servia de casa.

sábado, 21 de novembro de 2015

Fantasmas


Sente no chão da sua casa e olhe.
Você existe nas paredes, nos retratos, nos detalhes de cada canto.
Cada quadro pendurado com cuidado, cada vaso mantido com carinho, cada incenso ou mesmo toda a forma de bagunça.
O local que você escolheu para os seus guarda-chuvas, as suas bolsas, as suas chaves, as suas contas a pagar.
Os livros, as caixas abarrotadas de papéis, as roupas perdidas e em pilhas nos guarda-roupas ou esperando pacientemente em um canto da lavanderia a hora de passar.
Os imãs de geladeira, o cesto de revistas, a planta falsa, mas bonita.
Tudo é você.
A louça protelada, o descaso planejado, o afeto depositado na placa de Seja Bem Vindo ao Nosso Lar.
O boneco de ferro que sorri na grama, usa uma chapéu de palha e um avental de vovó.
As xícaras que não combinam, a louça que só pode ser usada em dias de festa, os copos feios e bonitos, a bagunça em cima da pia da cozinha e o ferro de passar que nunca parece ter um lugar definido para estar.
Então, sente no chão da sua casa e olhe.
Repense enfeites que não lhe dizem nada e que a cada dia que passa só ganham pó.
Repense a limpeza excessiva, a falta de bagunça, de liberdade e de vida.
Endireite os quadros de uma vez por todas ou os arranque das paredes e passe uma tinta nova para cobrir buracos e marcas antigas.
Jogue fora o que está apenas ocupando espaço, abra o coração e as janelas e deixe o ar entrar.
Recupere, mantenha, cuide de tudo que lhe pertence, de tudo que você quer olhar ao acordar e dormir, de tudo que faça os seus olhos sorrirem e a sua alma se encher de sentimentos bons.
Se desfaça, desapegue, jogue no lixo ser for preciso tudo aquilo que não faz mais sentido.
Mesmo o novíssimo recém adquirido que não lhe diz nada, apenas mostra a sua capacidade de o possuir.
Tudo é você.
Tudo remete à você.
Não aceite conviver com aquilo que não lhe traz conforto, sejam recordações, objetos, roupas, móveis novos ou antigos.
Sejam sentimentos, pessoas, atitudes ou lugares.
Nos acostumamos com cenários montados, com ideias antigas, com posturas apreendidas, com colchas velhas e travesseiros surrados.
Com coisas inúteis e caras.
Com carros e sentimentos blindados.
Nos negamos colocar fora vasos rachados, lâmpadas velhas, baús enegrecidos pelo tempo.
Guardamos muitas coisas velhas, muitas coisas sem uso, muitas palavras não ditas, muitos pés de meia que sabemos que nunca mais serão um par e sapatos novos que nunca iremos usar.
Temos medo de nos desfazer, de deixar para trás.
Do vazio a ser preenchido.
Mas antes uma casa vazia, pequena, simples e limpa, pronta para se (re) habitar do que um imenso castelo cheio de luxos, mofo, passado, futuros indesejados e histórias demais para guardar. 

domingo, 15 de novembro de 2015

O Passarinho Azul


Um ponto azul perdido na imensidão de verdes e marrons.
Um ponto que já foi para a calçada cinza e cheia de mandíbulas e pisadas.
O que você faz aqui pequeno pedaço do mar que ainda não pode ser oceano e voar?
Vou embora e deixo que a vida cuide da vida, pois não sou nada perto da sabedoria que me cerca.
Mas volto, pois meu coração bombeia mais com a força dos troncos, folhas, água e bichos do que com o meu próprio sangue.
Trago para casa o pedacinho de mar que ainda não é oceano e não pode voar.
Seringa com papinha, água, abrigo, preocupação. 
Adeus.
Depois de uma noite serena ele se despede na palma da minha mão.
Depois de eu ter a vida abrigada no diminuto espaço entre os meus dedos, as asinhas azuis vão bater em outro lugar que ainda não posso enxergar. 
Desabo com tanta dor como se duzentos quilos me arremessassem ao chão.
Um filhote de passarinho.
Não apenas um filhote de passarinho.
Toda a fragilidade minha, nossa, vossa que eu tenho a pretensão que se cure, sare, acabe, voe para longe, para o infinito.
Toda a dor de ser sozinho nos verdes e marrons, de doer na lama e nas calçadas de uma cidade que se chama luz.
No turbilhão de dormir e acordar e ser sol, chuva, temporal, amor e angústia.
Tenho a cabeça entre as mãos e o coração apertado por punhos.
Por um filhote de passarinho.
Não apenas um filhote de passarinho, mas todos os nossos afetos, amores, bondade que são mortos quando ainda estavam ensaiando o primeiro voo.
Ao olhar o corpinho inerte fico imensamente triste sem entender qual é, afinal de contas, a lição.
Ao ver as notícias, ler depoimentos, olhar fotos, fico imensamente triste sem entender qual é, afinal de contas, a lição.
Desse mundo que não tem paz.
Onde passarinhos não tem a chance de conhecer o céu.
Mas temos trabalho a fazer, vidas a viver, apesar tudo.
Sentada no chão de uma casa que não é minha, ouço um farfalhar desesperado atrás de uma grade de lareira.
Um ponto marrom de longas asas pretas se agarra ao ferro e tem o olhar resignado de quem sabe que chegou ao final.
Na palma da minha mão a andorinha se despede.
Mas desta vez para um lugar que eu posso enxergar e que é lindo como as asas do passarinho azul.
Adeus.
Uma manhã e duas despedidas.
Diferentes.
Penso que entendi a lição.